“A sagração do dinheiro no neopentecostalismo - Religião e interesse à
luz do sistema da dádiva”
é o título da tese de doutorado de Drance Elias da
Silva
. Através desse trabalho, Drance reflete sobre o dinheiro como elemento de
mediação na relação com o sagrado, na experiência religiosa nas igrejas
neopentecostais. O uso que se faz do dinheiro no espaço do culto, indica, segundo
Drance, uma produção social ou uma espécie de reinvenção do social comunitário.
É esse aspecto sociológico dá norte à sua análise.
Em entrevista concedida por telefone à Vocacionados Menores, Drance fala dessa
reinvenção do social comunitário por parte desse símbolo dentro das igrejas e do
sagrado que ele representa no neopentecostalismo. Além disso, ele nos revela as
dádivas que apresentou na tese e sua opinião sobre o neopentecostalismo.
Drance Elias da Silva é formado em Teologia, pelo Instituto de Teologia de
Recife, e em Filosofia, pela Universidade Católica de Pernambuco. Realizou
mestrado e doutorado em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Atualmente, atua como professor nessa universidade.
Confira a entrevista.

Vocacionados Menores – Você afirma que o dinheiro dentro das igrejas
neopentecostais é uma reinvenção do social comunitário. Como é que
esse símbolo se apresenta no imaginário de quem participa dos cultos
dessas igrejas?

Drance Elias da Silva
– Quando eu disse que o dinheiro era uma reinvenção do
social comunitário, foi para lembrar que ele é um elemento de ligação entre as
pessoas no espaço de culto. É um símbolo entre outros tantos símbolos que
participam dessa relação dentro do espaço. Isso cria, de alguma maneira, uma
relação entre eles. Comunitário, nesse sentido, é um encontro a partir de uma
série de símbolos que eles levam para ofertar. O social comunitário, nesse sentido,
é o processo permanente de produção de encontros a partir de uma diversidade de
coisas que são, evidentemente, levadas para serem doadas no altar. Então, o
dinheiro tem uma dimensão de vínculo nessa praxe religiosa que nós identificamos
no neopentecostalismo. Pelo menos, isso é um pressuposto que está colocado
dentro da experiência neopentecostal.

Vocacionados Menores – O que existe de sagrado no dinheiro para o
neopentecostalismo?

Drance Elias da Silva
– De sagrado no dinheiro existe a possibilidade de ele ser
transformado em uma coisa que ele não é. Por exemplo, nas igrejas
neopentecostais, como a Igreja Internacional da Graça de Deus ou a Igreja
Universal do Reino de Deus, ele se transforma numa ferramenta de Deus. Existem
várias interpretações que são dadas a esse elemento, que é simbólico, como a
atribuição de um valor de sacralidade. Na medida em que ele é ofertado em altar,
ao mesmo tempo é ressignificado enquanto coisa. Então, passa a ser uma oferta,
uma ferramenta de Deus, um propósito, trazendo uma série de significados. Por
isso, pelo fato de estar sendo oferecido a Deus, o dinheiro é ressignificado. Nesse
sentido, existe uma idéia de sacralidade desse objeto no espaço do religioso.

Vocacionados Menores – Com todos esses escândalos envolvendo o dinheiro
utilizado como dízimo por algumas igrejas neopentecostais, o senhor acredita que esse símbolo pode perder a valorização que tem dentro
desse espaço religioso?


Drance Elias da Silva – Ele não perde a valorização. Porque é claro que depois
do culto o dinheiro continua sendo dinheiro e será, de alguma maneira, investido
na própria igreja. Antes mesmo de ele continuar sendo o que ele é no dia-a-dia,
como sendo um equivalente geral, uma coisa que nós podemos trocar por outra,
naquele espaço do momento em que ele está sendo ofertado, o que está de fato
valendo não é, simplesmente, a dimensão monetária, não é um cifrão em termos
de valor nele contido. O dinheiro ganha, nesse momento, essa conotação. Claro
que depois do culto ele continua sendo dinheiro, porque, quer queira quer não, o
pastor deixa claro que ao você doá-lo como oferenda no culto, no espaço religioso,
ele será investido na igreja. Mas, antes disso, o significado que é atribuído a ele é
outra coisa. É nesse momento que percebemos que o dinheiro está como se
suspenso em sua realidade meramente material. Depois, é claro, os fiéis têm
clareza de que esse dinheiro será investido na igreja e no crescimento da própria
obra da igreja.

Vocacionados Menores – Dentro das igrejas neopentecostais, qual é a relação que
se faz entre religião, cultura e dinheiro?

Drance Elias da Silva
– Na relação entre a cultura, a religião e o dinheiro, eu
posso dizer que este é um elemento constitutivo com mediação de troca nas
relações, pois nós vivemos numa sociedade. Não há religião que possa, por
exemplo, prescindir de dinheiro. Inclusive, para sua própria subsistência. Só que,
de alguma maneira, o dinheiro não pode ser entendido, reduzido a meramente
uma realidade material. Ele é de fato ressignificado e, como eu disse, simbolizado.
Isso abrange a dimensão de fato da cultura, especificamente, na cultura religiosa.
Então, é uma relação que, nós poderíamos dizer, de pertencimento a todo esse
processo de construção da realidade social. Se no passado o dinheiro foi, por
exemplo, um outro significado, sal ou chocolate, hoje ele é uma outra realidade
material que se apresenta à sociedade. No entanto, a sua dimensão simbólica
continua, seja no espaço religioso, seja em outro espaço cultural em que ele possa
ganhar um outro significado para além de si mesmo.

Vocacionados Menores – Quais são as modalidades das dádivas religiosas, que o
senhor apresenta em sua tese?

Drance Elias da Silva
– As modalidades de dádivas religiosas são, por exemplo,
a dádiva como sacrifício, como propósito, a dádiva da atribuição, a dádiva do
desafio. São expressões de dádivas dentro de uma perspectiva, dentro de uma
análise hierárquica, que diz respeito à ressignificação do dinheiro nesse espaço. O
dinheiro como desafio, por exemplo, de fato instiga a pessoa a ir em busca desse
bem mais precioso. E ele toma isso como um desafio para si. O que ele vai trazer
no dia seguinte não é meramente o dinheiro, mas o desafio que ele tomou para si
e que o incitou de fato a essa perspectiva de oferenda, embora tomando como
pressuposto de que vai receber em dobro. São várias concepções que
identificamos dentro desse espaço de dádivas que vão sendo, aos poucos,
construídos no espaço neopentecostal.

Vocacionados Menores – O dinheiro é apresentado como uma mediação da
prosperidade?

Drance Elias da Silva
– Eu poderia dizer que a prosperidade é mais larga do que
meramente o dinheiro, mas este é uma espécie de mediador na medida em que ao
ser ressignificado e, ao mesmo tempo, ser doado, há uma idéia de que isso possa
possibilitar da parte de Deus a liberação das suas dádivas, daquilo que ele retém e
só através do sacrifício uma vez feito a pessoa possa de fato receber essas
bênçãos que vêm diretamente de Deus. Tudo isso dentro da lógica de
compreensão de um fiel dentro de um espaço neopentecostal. Então, dar o dinheiro, por exemplo, com a perspectiva de prosperidade, é significativo, porque
esse elemento está escrito dentro da possibilidade, da idéia do sacrifício. Porque
qual é o sacrifício maior que nós podemos hoje em dia fazer para poder, por
exemplo, oferecer a Deus o dinheiro como sendo um símbolo dessa natureza?
Então, sacrificando esse objeto em altar como símbolo ressignificado, é claro que,
na compreensão de um fiel, isso é um pressuposto para sua prosperidade, ou seja,
ele vai receber em dobro o que está doando a Deus. É como se o dinheiro fosse
não somente desamarrar aquilo que está prendendo a prosperidade, mas liberar
de Deus as suas dádivas, também porque ele está inserido dentro dessa idéia de
sacrifício. O dinheiro que está sendo doado é, de fato, o sacrifício que o fiel está
fazendo como símbolo de maior sacrifício, numa sociedade como a nossa, em que
o dinheiro é símbolo de grande importância.

Vocacionados Menores – A liberação total do sistema financeiro ameaça as
instituições democráticas e fortalece as igrejas neopentecostais?

Drance Elias da Silva
– Eu acho que o que fortalece as igrejas neopentecostais
não é simplesmente a liberação total do dinheiro, em termos de capitalismo
internacional. O que as fortalece é a capacidade que elas têm de reinventar seus
próprios símbolos para poder se manter do ponto de vista subjetivo e do ponto de
vista material. Então, nesse sentido, elas desenvolvem uma ética na qual
poderíamos encontrar alguns traços da própria ética protestante do Weber, mas
não fazendo uma relação direta, mecânica, porque não é o caso. Eu acho que a
ética pentecostal leva a pessoa a um trato com relação a esse símbolo que faz com
que ele se torne uma prioridade na expressão de sua fé. Não há, por exemplo,
como retirarmos o dinheiro das igrejas neopentecostais como um elemento
significativo de importância. Elas não subsistiriam como uma certa facilidade.
Então, o dinheiro se tornou um elemento bastante significativo de comunicação, de
relação, de encontro, e isso independe da abertura meramente do mercado a nível
internacional. Eu acho que é uma lógica muito própria, ou, pelo menos, muito bem
estabelecida dentro do pensamento religioso neopentecostal, no qual o dinheiro se
ancora de uma forma diferente, como de fato está ancorado numa estratégia bem
maior de sociedade mercantil como a nossa.

Vocacionados Menores – O liberalismo pode ser confundido com o
neopentecostalismo?

Drance Elias da Silva
– Veja, o neopentecostalismo não é uma realidade
separada dessa realidade em que estamos vivendo em sociedade. É evidente que,
por dentro dele, evidentemente perpassa essa visão mercantilista neoliberal.
Quanto a isso, não há dúvidas. As estratégias neopentecostais para adquirir
dinheiro de fato são agressivas e de fato são empresariais. Eles têm evidentemente
todo um know how em termos de perspectivas empresarial, que perpassa, por
exemplo, a condução dos seus cultos. Temos consciência, quando pesquisamos, de
que há um comportamento evidentemente nessa perspectiva. Eu diria que o
neopentecostalismo, de alguma maneira, colabora, fortalece a perspectiva liberal à
medida que não incomoda na sua crítica mais fundamental. As igrejas
neopentecostais, como todas as outras igrejas ou religiões no Ocidente em que
nós estamos vivendo de sociedade neoliberal, estão passando por essa realidade.
Então, não existe uma realidade neopentecostal separada ou suspensa dessa
realidade mais ampla do ponto de vista político e econômico que estamos vivendo
hoje. Há, portanto, uma excelência no comportamento religioso. Podemos, com
facilidade, identificar como as igrejas neopentecostais sabem utilizar os meios de
comunicação, o quanto elas têm uma dimensão empresarial e uma estratégia
muito clara. É claro que eu estou falando todas essas coisas porque o meu ponto
de vista é o do fiel, não meramente da instituição. A crítica que muitos fazem em
relação ao uso do dinheiro pelas igrejas neopentecostais é uma crítica que parte
do pressuposto em termos das instituições. Mas como é que fica a questão do fiel?
Como é que ele está vendo isso a partir de seu pertencimento religioso? Há um
processo de continuidade e descontinuidade das igrejas neopentecostais dentro dessa conjuntura.

Vocacionados Menores – E qual é a sua visão pessoal sobre a forma de agir das
igrejas neopentecostais?

Drance Elias da Silva
– Primeiro, eu não tenho uma visão ingênua do
neopentecostalismo enquanto realidade institucional. O trabalho, embora lidando
com a questão da dádiva e do que a ela hoje pode ser agregado para uma melhor
compreensão, não anula a crítica que fazemos às igrejas neopentecostais. Não
anula a idéia do comportamento que identificamos em relação à sua colaboração,
por exemplo, a essa sociedade mercantilista que nós estamos vivendo. Sobre ela,
recai uma crítica que muitos já fizeram, com a qual concordo. A grande questão é
como se dá a relação do fiel com a sua igreja no cotidiano. As estratégias são as
mais criativas, agressivas, mas também são aquelas a que de fato o fiel encontra
uma certa significação a outras experiências de pertencimento. Eu tenho uma
visão, até certo ponto, positiva das religiões neopentecostais, à medida que a
crítica que já foi feita, mais reducionista, não salvaguardava uma outra visão que
parte do fiel. É preciso que, de alguma maneira, ele possa aprofundar essa sua
experiência de pertencimento, inclusive também fazer as suas críticas. Eu não acho
que os fiéis estejam como cordeirinhos, totalmente alienados, dominados, imersos
num processo de não consciência da opção que ele está fazendo. Há uma reserva
de liberdade muito grande que nós temos que contar com ela da parte dos fiéis.
Eles também se decepcionam no âmbito da insistência por parte dos pastores, por
exemplo, de pedir dinheiro, em monopolizar muito dos momentos desse espaço de
pertencimento. Há muitos fiéis que migram hoje de uma igreja para outra porque
se decepcionaram, mas nem por isso o neopentecostalismo deixou de crescer.
Então, há alguma coisa aí de fato realmente religiosa, que está além das
estratégias de convencimento por parte das religiões. Há algo muito mais forte e
que está nas mãos dos próprios fiéis.

Postar um comentário

Tecnologia do Blogger.