Com a queda do marxismo, o que já se manifestava aqui e acolá se irradiou por todo o nosso cético século XX: houve uma grande explosão de misticismo. Só se fala em horóscopos, tarot, hinduísmo, homeopatia, alquimia, ocultismo, esoterismo e todos os tipos de superstição se alastram. E até ateus marxistas passaram a exibir em seus carros o dísticos "eu creio em duendes".

O fenômeno foi tão invasivo que a famosa revista internacional 30 Giorni começou a publicar repetidos artigos sobre o misticismo herético e sobre a Gnose. E o que era assunto de eruditos passou a ser tema amplamente divulgado e universalmente admitido (1).

Assim, torna-se hoje bem claro que razão cabia bem a Simone de Pètrement que, ao analisar a literatura a partir do Romantismo, isto é, a partir da Revolução Francesa, concluiu: "a julgar por nossa literatura, nós entramos numa idade gnóstica" (2).

Erich Voegelin, examinando os sistemas totalitários de nosso tempo - nazismo, fascismo, e comunismo - chega a conclusão de que eram sistemas gnósticos e os partidos que adotaram esses sistemas eram, na verdade, "ersatzs" da religião. Ele não hesita em colocar também a psicanálise e o progressismo no mesmo balaio da gnose:

"Dizendo movimentos gnósticos entendemos referir-nos a movimentos como o progressismo, o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo (nazismo)" (3).

Não falta mesmo quem veja na própria ciência moderna reflexos da gnose antiga. Por exemplo, Jacques Lacarrière chama Einstein, Planck e Heisemberg "ces gnostiques de notre temps" (4).

Sem significar que endossemos as conclusões da obra, é interessante, entretanto, lembrar o best-seller de Fritjoff Capra - "O Tao da Física"-, que pretende ligar toda física moderna ao gnosticismo.

Poderíamos citar muitos outros autores. Para os limites de um artigo bastam-nos entretanto os fatos, esses eruditos e as revistas de divulgação cultural.

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Quando se estuda a gnose entra-se num labirinto cheio de brumas, tentando descobrir segredos que permitirão chegar a um mistério. Não é de estranhar que o tema se preste a confusões.

É pois necessário estabelecer distinções. E uma primeira é entre panteísmo e gnose. O próprio Dictionnaire de Théologie Catholique de A. Vacant e E. Mangenot (5) cita, de cambulhada, doutrinas panteístas e gnósticas, sem distingui-las. Em seu elenco estão desde as religiões hinduístas, do Egito, China e Caldéia, passando por Heráclito e Parmênides juntos, pelo sufita Ibn Arabi, Campanela até Diderot, Kant, Novalis e os românticos.

Ora, o panteísmo é a doutrina que considera que tudo - inclusive a matéria - é Deus. A gnose, ao contrário, em quase todos os seus sistemas condena a matéria como obra maligna.

Simplificando um tanto o problema, cujos meandros não podem ser examinados nos limites deste artigo, pode-se dizer que o panteísmo representa uma corrente plutôt otimista, enquanto a gnose é pessimista (6).

O panteísmo é naturalista, monista e tende ao racionalismo.

A gnose é dualista, anti- cósmica e anti-racionalista. Mas essa é uma distinção que deveria em alguns casos ser matizada, porque alguns sistemas gnósticos são ambivalentes, com relação ao mundo material, que é dialeticamente amado e odiado ao mesmo tempo (7). Por outro lado, há sistemas panteístas que admitem a transformação da matéria em espírito, ao fim da evolução (8).

Por exemplo, nota-se no sistema panteísta de Plotino uma clara tendência para gnose, embora esse autor neoplatônico tenha até escrito uma obra contra os gnósticos de seu tempo.

Conviria ainda dizer que o panteísmo é uma anti-câmara para a gnose, sistema reservado para espíritos mais tendentes ao misticismo orgulhoso do que ao sensualismo.

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Para conceituar a gnose, poderíamos dizer que ela pretende ser "o conhecimento do incognoscível".

Evidentemente, essa conceituação revela uma contradição que é típica da gnose. Conhecer o incognoscível é uma contradição conceitual e lógica. Mas ocorre que a gnose repele a inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e não discursivo e lógico.

Conhecer o incognoscível, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal, coisas impossíveis de compreender. De fato não podemos compreender ou conhecer a própria essência de Deus que é ser infinito e transcendente, impossível de ser captado por nosso intelecto. Também não podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser não existe, e o mal moral não tem razão que o justifique.

Assim, a gnose pretende oferecer ao homem um conhecimento natural que o colocaria em posição de compreender - e portanto superar - a Deus, de compreender a mal, e, ademais, de conhecer sua natureza mais íntima, que seria divina.

A gnose é então a religião que oferece ao homem o conhecimento do bem e do mal.

Ora, sabe-se que a árvore do fruto proibido do Éden era exatamente a árvore do conhecimento ou ciência do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tentação de Adão. Com efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, "seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal" (Gen., III,5). A tentação de Adão e Eva foi a de se tornarem deuses. Essa é a grande tentação do homem, que, levado pelo orgulho, como Lúcifer, não admite sua finitude, não aceita sua contingência.

Essa tentação é, de fato, uma revolta anti-metafísica. Ora, é esse um outro modo de conceituar a gnose: uma revolta anti-metafísica.

Se admitirmos essa interpretação da tentação adâmica, teremos que concluir existência uma continuidade da gnose na História. E é o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se realmente como uma religião ora oculta, ora pública, mantendo porém unidade e continuidade no transcorrer da História.

Ladislao Mittner, ao estudar o pietismo protestante, seita mística e gnóstica oriunda dos tratados de Jacob Boehme e fundada por Spenner liga essa seita a uma única grande corrente gnóstica existente na História.

Para representar a unidade do fenômeno religioso gnóstico, Mittner usa a imagem muito própria e muito cogente do rio cársico.

No Carso, região calcárea da ex-Iugoslávia, há risos que de repente desaparecem na solo extremamente permeável de calcáreo e passam a correr subterraneamente, voltando a aparecer na superfície muitos quilômetros além. Rio cársico é aquele que aparece e desaparece, tornando-se ora visível ora oculto em seu percurso.

Mittner diz que "é quase impossível distinguir o pietismo das muitas outras seitas religiosas da época. Filões singulares do movimento apresentam fenômenos cársicos: aparecem, desaparecem, e, de repente, reaparecem mais além, sem que a identidade do filão possa ser propriamente demostrada" (9).

Assim é a gnose: na história, ela é um fenômeno religioso do tipo cársico.

Essa unidade histórica da gnose através dos tempos e civilizações é constatada por muitos autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:

"Mais perto de nós que Platão e os drúidas, uma espécie de unidade mística do mundo indo-europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade Média. Se nós abraçamos o domínio geográfico e histórico que vai da Índia à Bretanha, constatamos que uma religião aí se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterrâneo, desde o século III de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido elaborados inicialmente na Pérsia, depois nos segredos gnósticos e órficos e é a fé maniquéia" (10).

Por sua vez, H. I. Marrou atesta:

"(...) da fato, a gnose e seu dualismo pessimista exprimem umas das tendências mais profundas do espírito humano, uma das duas ou três opções fundamentais entre as quais o homem deve finalmente escolher. Claude Tresmontant mostrou bem a permanência da tentação gnóstica, sem cessar reaparecida, sob formas diversas no pensamento ocidental no curso de sua história nos Bogomilas e Cátaros da Idade Média, em Spinoza, Leibnitz, Fichte, Schelling, Hegel. Poder-se-ia continuar esta história além do romantismo alemão e até nossos dias: o destino de Simone Weil é particularmente muito significativo; foi bem o seu neo-gnosticismo que a deteve finalmente na soleira da Igreja e sua herança se reencontrava na obra histórica de sua amiga e discípula Simone de Pétrement" (11).

O tema, além de misterioso e fascinante, é muito atual. Voltaremos a ele, a fim de informar nossos amigos leitores sobre as brumas que envolveram nossa época após o Vaticano II e o fim do Marxismo.

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