É comum nos países do Oriente Médio, ouvir ainda hoje uma tradição que vem de muito antes, das raízes mesmas da vida e da cultura destes povos: a saudação “ shalom”, que quer dizer paz em hebraico. É a maneira que os israelis têm de se saudar. O mesmo acontece com os árabes, que usam o termo salam, que tem o mesmo significado: “paz”. Chega a ser incrível que em uma região na qual a paz está totalmente ausente, para não dizer quase perdida numa guerra sem quartel, a saudação costumeira do povo continua sendo desejar a paz.

Por ser tão difícil e ameaçada, a paz na Bíblia sempre foi considerada um bem extremamente precioso. A raiz hebraica šlm ( da qual deriva shalom) é muito antiga e comum a todas as línguas semitas e expressa não só uma ausência de guerra, mas uma idéia de perfeição, de “estar completo”, de “estar perfeito” “estar terminado”. Portanto, quem vive no shalom está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude.

No texto hebraico do AT , portanto, a paz tem uma ampla gama de significado, que ultrapassa o meramente político-bélico. O significado teológico de paz como benção e salvação de Deus está presente na maior parte dos textos.

A tradução grega traduziu shalom por eirene, o que enfraquece um pouco seu significado, já que eirene remete a uma idéia de ataraxia, de ausência de movimento e conflito, que não corresponde à paz bíblica. Em todo caso, destaca-se na Bíblia judaica o significado da paz como fruto do cumprimento da vontade de Deus. Como diz 2Mac 1,4: “ (Que Deus) abra o vosso coração à sua Lei e a seus preceitos e vos conceda a paz”. A paz é, aqui, apresentada como o resultado da observância a Torah e, por conseguinte, indica “salvação” em um sentido bem teológico.

O Novo Testamento, na história da infância de Jesus, o apresenta como o portador da paz ao mundo por excelência. Em Lc 2,14, por ocasião de seu nascimento, os anjos anunciam: “ Gloria a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados” No nascimento de Jesus a paz, em seu significado pleno de salvação, de ausência de conflitos e de vitória sobre o mal e a injustiça, é oferecida aos seres humanos.

No início do evangelho de Mateus, Jesus começa sua vida pública com um discurso programático que é iniciado com o Sermão da Montanha, onde se destacam as bem-aventuranças. Entre essas , está na versão de Mateus, em Mt 5,9: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” . Dentro do contexto das Bem-aventuranças, portanto, para participar do Reino de Deus, anunciado por Jesus Cristo, é necessário que o discípulo seja um construtor da paz, trabalhe para que a paz reine efetivamente na comunidade.

Nos escritos de Paulo, a paz é sempre unida à graça mostrando que para o apóstolo a verdadeira paz era proveniente da graça de Deus que recebemos em Jesus Cristo. Na carta aos Colossenses, por exemplo, em 3,15 lê-se: “E a paz de Cristo reine em vossos corações. Nela fostes chamados para formar um so corpo”.Para Paulo a paz é um fruto do Espírito(Gl 5,22; Rm 14,17). Em Rm 14,17 Paulo está bem perto da mensagem dos profetas, escreve “…porque o reino de Deus não é comida nem bebida, senão justiça, paz e alegria no Espírito Santo”. Por isso Paulo pode afirmar que “justificados pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”.

Na carta atribuída ao apóstolo Tiago encontra-se uma interessante afirmação sobre a ligação entre justiça e paz. Em Tg 3,18, o autor termina a segunda parte do terceiro capítulo, em que discorre sobre os frutos da sabedoria vinda de Deus, com a solene afirmação: “O fruto da justiça semeia-se na paz para os que constroem a paz”. Entende-se aí justiça como a conduta humana justa como resposta à vontade de Deus, uma conduta de acordo com as exigências de Deus. Quem constrói a paz está semeando os frutos da justiça, no sentido de obediência às exigências divinas.

Os ensinamentos do AT e do NT podem contribuir para uma reflexão sobre a possibilidade da paz no mundo hodierno se se tiver diante dos olhos as exigências dos profetas. A paz (shalom) na perspectiva bíblica, só é possível em uma sociedade que vive de acordo com as exigências divinas postuladas na Lei, na Torah. Estas exigências foram assumidas na pregação de Jesus Cristo e a Comunidade Cristã desde os primeiros tempos as conservou nos evangelhos e nos outros escritos do Novo Testamento. Uma vida em conformidade com as exigências divinas possibilita criar na sociedade um procedimento ético de respeito aos direitos do próximo, os direitos humanos, que ajudam a viver a justiça e portanto a construir a paz. Na teologia do Antigo Testamento, portanto, é impossível construir uma sociedade justa sem o respeito à vontade de Deus expressa em seus mandamentos.

Jesus Cristo, seguindo nisto os doutores da Lei de seu tempo, resumiu todo o intrincado da Lei, e de suas interpretações rabínicas, em dois preceitos, que resumem toda a Lei: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo teu coração, de toda a tua vida, e de toda a tua força” e “ Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. O homem moderno que quiser verdadeiramente trabalhar na construção da paz deverá levar a sério e viver estas exigências éticas.



* Agradeço muito do conteúdo deste artigo ao Prof. Manoel Bouzon, colega e amigo, que ensina Antigo Testamento no departamento de teologia da PUC-Rio.

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