Breve reflexão sobre os Anjos e RB 19

Por Dom Adriano Bellini, OSB


Cantar-vos-ei na presença dos anjos,
e me prostrarei voltado para o teu sagrado templo
(Sl 137, 1-2)

Celebrar a festa dos Santos Sanjos (29/10) é celebrar a presença de Deus entre nós. Como Pai Bondoso, Deus cuida de cada um de nós, colocando seus anjos à nossa frente para nos proteger e nos guiar no caminho do temor do Senhor.

Mas quem são os anjos? Diz o Catecismo da Igreja Católica que “os anjos são criaturas espirituais que glorificam a Deus sem cessar e servem aos seus desígnios salvíficos em relação às demais criaturas: ‘Ad omnia bona nostra cooperantur angeli - Os anjos cooperam para todos os nossos bens’” (CaIC 350). A palavra anjo vem do grego aggelou que significa anunciador, mensageiro. Portanto, sua denominação refere-se ao seu encargo. Os anjos são servidores e mensageiros de Deus e “vêem continuamente a face do Pai que está nos céus” (cf. Mt 18, 30). Eles são adoradores de Deus por excelência. Escreve São Basílio que “o serviço dos anjos consiste em louvar a Deus sem cessar”. Os anjos prestam o serviço litúrgico a Majestade Divina, oferecendo-lhe constantemente o incenso. Porém, prestam também um serviço a nós, comunicando-nos as graças e as bem-aventuranças de Deus, além de estarem conosco para nos guardar e de exercerem conosco a misericórdia.

Quando pensamos os anjos na Regra Beneditina (RB), logo nos vem à mente o sonho de Jacó citado por São Bento no capítulo sétimo, Da Humildade. Diz o Santo Patriarca:

Se, portanto, irmãos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente àquela exaltação celeste para a qual se sobe pela humildade da vida presente, deve ser erguida, pela ascensão de nossos atos, aquela escada que apareceu em sonho a Jacó, na qual lhe eram mostrados anjos que subiam e desciam. Essa descida e subida, sem dúvida, outra coisa não significa, para nós, senão que pela exaltação se desce e pela humildade se sobe. Essa escada ereta é a nossa vida no mundo, a qual é elevado ao céu pelo Senhor, se nosso coração se humilha. Quanto aos lados da escada, dizemos que são o nosso corpo e alma, e nesses lados a vocação divina inseriu, para serem galgados, os diversos graus da humildade e da disciplina (RB 7, 5-9).

Além dessa passagem, lembramo-nos também do capítulo 19 da Santa Regra, Da maneira de salmodiar, quando São Bento diz: “Cantar-vos-ei em face dos anjos” (RB 19, 5), citando o salmo 137. No mosteiro, a presença máxima de Deus se faz justamente durante o Ofício Divino. Daí a preocupação de São Bento com a solicitude e disposição do nosso coração com relação ao Ofício Divino:

Na hora do Ofício Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo que estiver nas mãos, corra-se com toda a pressa, mas com gravidade, para que a escurrilidade não encontre incentivo. Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino (RB 43, 1-3).

A máxima “nada se anteponha ao Ofício Divino” encontra eco na RB nas máximas “nada antepor ao amor de Cristo” (RB 4, 21), e ainda, “nada absolutamente antepor a Cristo” (RB 72, 11). Desse modo, podemos dizer que Ofício Divino = Amor de Cristo. Durante as orações, é o próprio Cristo quem coloca em nossos lábios o louvor adequado a Deus. Para São Bento, o coro monástico é mais do que uma simples imitação do coro celestial: o coro monástico é o próprio coro angelical, pois os anjos vêm até nós para cantarmos juntos a glória do Senhor, de modo que eles nos acompanham durante o Ofício Divino, rezam conosco e nos ensinam que diante da Divina Majestade, devemos nos tornar adoradores perfeitos como eles. Diz São Basílio que “salmodiar é exercer a função dos anjos, viver de um modo celestial, queimar diante de Deus um incenso inteiramente celestial”. Por isso, também nós, imitadores dos anjos, e junto deles, devemos exercer a mesma função: salmodiar, ocuparmo-nos em glorificar a Deus, em engrandecer o Criador. São Bento inicia o capítulo 19 dizendo:

Cremos estar em toda parte a presença divina e que ‘os olhos do Senhor vêem em todo lugar os bons e os maus’. Creiamos nisso principalmente e sem dúvida alguma, quando estamos presentes ao Ofício Divino (RB 19, 1-2).

Nesse capítulo, São Bento quer inculcar em seus monges a atitude do “lembrar-se de Deus” - Memoria Dei. Assim como no capítulo 7, 26, São Bento cita novamente Prov 15, 3: “os olhos do Senhor vêem em todo lugar os bons e os maus”, indicando, assim, a onipotência e onipresença de Deus entre os homens. Deus está constantemente atento às suas criaturas; estas, por sua vez, devem estar sempre lembradas do seu Senhor: Ideo semper memores simus - Lembremo-nos (RB 19, 3); credimus - cremos; credamus - creiamos. São Bento lembra o primeiro grau da humildade: “Assim, o primeiro grau da humildade consiste em que, pondo sempre o monge diante dos olhos, o temor de Deus, evite, absolutamente, qualquer esquecimento, e esteja, ao contrário, sempre lembrado de tudo o que Deus ordenou…” (RB 7, 10-11). Semper sit memor: o monge é aquele que tem sempre diante de si o temor de Deus. Pode parecer impossível, mas de fato, podemos nos esquecer de Deus, nos afastar d’ Ele, tornando o nosso coração frio e insensível às coisas espirituais. Lembrar-se sempre de Deus e de seu amor é o caminho que leva à conversão e à união com Deus. Quando o homem se esquece de Deus, deixa-se envolver pelo pecado. Ao contrário, quando se mantém lembrado de Deus, é envolvido por graça e perdão e deseja somente agradar ao seu Criador, maravilha-se com as obras grandiosas e os prodígios de Deus.

Para os monges e monjas, que vivem sob uma Regra e um Abade (cf. RB 1, 2), toda a vida monástica está orientada e equilibrada entre dois pólos: oração e trabalho (ora et labora). Por melhor e mais proveitoso que possa ser o trabalho manual ou intelectual que realizam, sem dúvida alguma, a liturgia bem celebrada, o louvor devidamente prestado a Deus, a presença total e a intensidade de amor durante a celebração do Ofício Divino e da Celebração Eucarística será sempre o melhor que terão a oferecer tanto ao próprio Deus quanto aos homens. Durante o Ofício, estamos verdadeiramente inseridos na liturgia celeste e em comunhão com todos os homens, nossos irmãos, e elevamos a Deus a ação de graças e os pedidos de toda a humanidade. Portanto, durante o Opus Dei, devemos expulsar de nosso coração e de nossa mente a preguiça, as contrariedades, as distrações, para dar lugar ao amor ardente, de modo que “seja tal a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com a nossa voz” (RB 19, 7).

O monge deve ser imitador de Nosso Senhor Jesus Cristo, modelo único e sublime de toda perfeição e santidade. O monge deve imitar também os anjos, prestando um serviço agradável a Deus através da liturgia, do louvor, da adoração, da contemplação, da lectio divina… Mas também deve servir aos homens, usar também de misericórdia para com o próximo, assim como os anjos usam de misericórdia para conosco. Servindo aos homens, estamos prontamente servindo a Deus que se faz presente no nosso próximo, quem quer que seja ele. Seja o nosso incenso agradável a Deus, e que o odor suave que sobe até Deus seja o perfume de nossa santidade.

Ut in omnibus glorificetur Deus (RB 57,9)

Mosteiro de São Bento de São Paulo
29 de setembro de 2003
Festa dos Santos Anjos, Miguel, Gabriel e Rafael

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