Estou em Natal quando me chega de Fortaleza, redigida em um bilhetinho apressado, a notĂ­cia: o Santo Padre decidira dedicar o terceiro milĂȘnio a Nossa Senhora! Foi difĂ­cil ficar calada. JĂĄ hĂĄ algum tempo repetia, brincando:
“Se eu fosse o papa, depois dos trĂȘs anos dedicados Ă  Trindade, dedicaria a Nossa Senhora o ano 2001”.

Nesse dia, surgiu a brincadeira na capital do Rio Grande do Norte:
“É por isso que vocĂȘ nĂŁo Ă© papa. VocĂȘ iria “dedicar” apenas “um ano” a Maria. O Papa consagrou logo TODO o milĂȘnio Ă  MĂŁe de Deus!”
“TĂȘm razĂŁo”, respondi-lhes. E continuei a brincadeira:
“Esta Ă© a Ășnica razĂŁo pela qual Deus nĂŁo me fez papa...”
“Nem homem... nem sacerdote...”
“Nem santa!”

Para aumentar a alegria, soube, na volta, que o Santo Padre nĂŁo havia consagrado o milĂȘnio, mas o mundo inteiro ao Coração Imaculado de Maria, em uma bela oração que tambĂ©m nĂłs deverĂ­amos fazer, consagrando Ă  MĂŁe de Deus, alĂ©m do mundo inteiro, a Igreja, nosso apostolado, a nĂłs mesmos e a nossa famĂ­lia. Mas, qual o significado da palavra “consagrar”? O que significa consagrar o mundo Ă  Imaculada Conceição? “Consagrar”, o que significa?

Em hebraico, a palavra Kadosh significa “santo, separado”. É um termo utilizado em referĂȘncia a Deus, o Ășnico Santo. Para as pessoas “santificadas”, ou “separadas” para Deus, posse exclusiva de Deus, que chamamos “consagradas”, os judeus utilizam o termo Kiddushin, que se refere, entre outras coisas, Ă  santificação pelo casamento, quando o noivo Ă© separado, exclusivo para a noiva, e vice-versa, e ambos sĂŁo separados para Deus.

O mesmo termo Ă© utilizado para o povo de Israel, povo “separado para Deus” atravĂ©s de uma aliança. A este povo Deus refere-se inĂșmeras vezes, do GĂȘnesis ao Apocalipse, como “esposa”, “noiva”, “desposada”, amada (cf. Ez 16; Os 2,42-5 e 3; Ap 22,17; Ef 5,25).
Desse modo, consagrar uma pessoa, um casal, um povo, um local, um objeto, um animal, um alimento a Deus, Ă© tornĂĄ-lo santificado, porque exclusivamente pertencente ao Santo, que Ă© Deus. DaĂ­ ser proibido utilizar para outros fins os animais, a comida, objetos ou locais consagrados a Deus, separados para Ele.

Para os judeus, o lugar “santo por excelĂȘncia” era o Templo de JerusalĂ©m, no qual habitava o “Santo”, em especial no recinto chamado “Santo dos Santos”, onde era guardada a Arca da Aliança com as tĂĄbuas da Lei e a vara de AarĂŁo (cf. Hb 9,4).

Quando nĂłs catĂłlicos utilizamos a palavra “consagrar”, mantemos o mesmo sentido: “separar para Deus”, “tornar sagrado”, “tornar santo porque pertencente exclusivamente ao Santo que santifica tudo o que lhe pertence, tudo o que ‘toca’”. TambĂ©m nĂłs nĂŁo podemos utilizar para fins nĂŁo litĂșrgicos os vasos, utensĂ­lios e objetos sagrados da liturgia, por exemplo, nem podemos desrespeitar as imagens, os Ă­cones, os livros sagrados, as igrejas e capelas e – inimaginĂĄvel! – o TabernĂĄculo ou SacrĂĄrio, onde estĂĄ presente em corpo, sangue, alma e divindade, o prĂłprio Deus. Tudo o que pertence a Deus, tudo o que serve a Ele Ă© santo, Ă© sagrado, porque Deus o santifica com sua presença, sua Palavra, sua posse exclusiva.

Ao consagrar o mundo à Imaculada Conceição, o Santo Padre o separa para Deus, få-lo posse Dele, a quem Maria pertence inteiramente. Deus o santificarå. Ele, juntamente com sua Mãe, não permitirå que nenhum mal o toque. Só Deus tem o poder de consagrar.

AlĂ©m disso, tanto judeus como catĂłlicos temos uma convicção de base sobre a consagração: sĂł Deus pode consagrar algo, apossar-se dele amorosamente, separĂĄ-lo para Si. Tome-se como exemplo os votos (cf. At 21,24 e Nm 6,14) feitos pelos judeus ou casos como o de Caim e Abel e o de EsaĂș e JacĂł.
No primeiro exemplo, toma para si (consagra, separa, santifica) a oferenda pura de Abel, mas nĂŁo toma para si a oferenda inadequada de Caim. No caso de EsaĂș e JacĂł, abençoa o mais novo ao invĂ©s do mais velho, conforme profecia por Ele mesmo inspirada, sendo, assim, fiel Ă s suas promessas.

Nestes e em outros casos do Antigo Testamento, fica claro que a consagração Ă© iniciativa de Deus, que sĂł Ele tem o poder de consagrar, de separar para si, de santificar, de abençoar, segundo os mistĂ©rios de sua misericĂłrdia. Em alguns casos, Ele toma essa iniciativa em previsĂŁo do “sim” com o qual lhe corresponderĂĄ seu eleito, como no caso de MoisĂ©s, Davi, Jeremias, IsaĂ­as, JoĂŁo Batista e do prĂłprio povo eleito.

Em outros casos, Ele confirma a consagração feita como voto ou promessa, pela prĂłpria pessoa ou por seus pais. É o caso, dentre outros, de Samuel e SansĂŁo, consagrados pelas mĂŁes (entre os judeus a descendĂȘncia vem pela mĂŁe e a ela cabe a escolha de consagrar o filho a Deus, o que, no caso da consagração do mundo a Maria Ă© extremamente significativo) ou de Judite, DĂ©bora, a profetisa Ana, que consagraram-se inteiramente a Deus e, pela evidĂȘncia dos frutos de suas vidas, foram santificados por Ele (cf. 1Sm 1,19-28 e Lc 2,36-38).

Em Jo 20, Jesus reitera, a nĂ­vel da Igreja e do sacerdĂłcio comum dos fiĂ©is leigos, o poder dos votos, das consagraçÔes no Antigo Testamento, ao afirmar que o que ligarmos na terra serĂĄ ligado no cĂ©u e o que aqui desligarmos por Ele serĂĄ desligado (cf. Jo 20,22s). Os Atos dos ApĂłstolos estĂŁo repletos de narrativas desse tipo, quando o Senhor confirma com sinais as palavras dos apĂłstolos. Os casos de Ananias e Safira e do mago SimĂŁo (cf. At 5,1-11 e 8,9-25) sĂŁo exemplos eloqĂŒentes do cumprimento desta passagem de JoĂŁo.

Deus leva a consagração muito a sério e é fiel a ela. Esses exemplos nos mostram como a consagração é levada a sério por Deus, como Ele cumpre fielmente sua parte nessa santificação, nessa posse exclusiva, santificante e zelosa do que Lhe é consagrado. Livre-nos Deus de violar uma dessas separaçÔes e de acontecer-nos o que sucedeu a Nabucodonosor segundo narrativa no livro de Daniel (cf. Dn 4).

Jesus, em seu batismo, foi “consagrado pela unção”, como Ele mesmo diz em Lc 4. Esta consagração lhe valeu o tĂ­tulo de Ungido (Messias, em hebraico; Cristo, em latim). Jesus Ă© o Ungido de Deus, o Ungido por excelĂȘncia, Ungido por Deus em vista de sua missĂŁo. Pelo sacramento do Batismo, todos somos consagrados a Deus. Todos somos santificados – “povo santo” – separados exclusivamente para Ele – “raça escolhida” – pertencemos a Ele. Em Jesus Cristo somos ungidos “sacerdĂłcio rĂ©gio”.

Na vida adulta, esta consagração especifica-se pela consagração no estado de vida no qual o Senhor deseja que O sirvamos: matrimĂŽnio, celibato consagrado ou sacerdĂłcio. Ah! Se compreendĂȘssemos a profundidade desta consagração do estado de vida! Se mergulhĂĄssemos na beleza desta consagração para a construção do Reino e para toda a eternidade! Muita coisa seria diferente, muitos conceitos mundanos teriam deixado de atingir os cristĂŁos... Mas essa Ă© outra histĂłria. Vamos a Maria.

O que significa consagrar o mundo Ă  Imaculada Conceição? Dentre as criaturas, Maria Ă© a consagrada por excelĂȘncia. Foi consagrada, isto Ă©, separada, desde sua concepção, quando, toda de Deus, foi concebida sem o pecado original. O prĂłprio Deus, assim, a separou, consagrou-a desde sua concepção. Foi separada para Deus durante toda a sua vida, pois, ainda que sujeita aos sofrimentos da humanidade, nunca pecou. Celebrou, finalmente, sua pertença a Deus, sua consagração, seu “ser separada”, seu “ser toda de Deus” na Anunciação, quando o anjo levou-a a compreender trĂȘs perguntas bĂĄsicas para todo homem e mulher:

- Quem sou eu?
- O que Deus quer de mim?
- Como se cumprirĂĄ o que Deus quer de mim?
As respostas do anjo, todos conhecemos:
- Tu és a kekaritoméne, a inteiramente plena da Graça, a plena de Deus!
- Deus quer que tu sejas a MĂŁe do Salvador!
- O EspĂ­rito Santo virĂĄ sobre ti!
As respostas e reaçÔes da Miryam de Nazaré, também as sabemos de cor:
- SilĂȘncio.

Maria perturbou-se, espantada como alguĂ©m, uma criatura, poderia ser inteiramente habitada por Deus, pois em sua mentalidade judaica, uma criatura nĂŁo poderia nem sequer ver o Criador (cf. Ex 33,20), ou – especialmente uma mulher – nĂŁo sendo sumo-sacerdote, sequer aproximar-se e entrar no Santo dos Santos (cf. Hb 9,7).

O Templo de Jerusalém era a morada de Deus! Nenhuma criatura era a morada de Deus! Como uma moça de quinze anos, judia e temente a Deus, não se perturbaria com semelhante saudação?
A obediĂȘncia da fĂ©, porĂ©m, superou todo o condicionamento cultural, todo o aparente absurdo da situação e Maria respondeu com a segunda mais bela de suas respostas: o silĂȘncio.

Ao anĂșncio do anjo de que seria a MĂŁe do Salvador, a MĂŁe do Ieshuah, nossa judia de quinze anos, terĂĄ talvez se lembrado das dezenas de Ieshuah que conhecia. TerĂĄ talvez vindo Ă  sua memĂłria a profecia de IsaĂ­as, que levava muitas jovens mĂŁes judias a colocar o nome de Ieshuah – “aquele que salva” – em seus filhinhos, na esperança de que viriam a ser a Salvação esperada por Israel.

Mais uma vez reagiu pela obediĂȘncia da fĂ© e, ao invĂ©s de buscar em sua humanidade a solução mais lĂłgica – lembremo-nos de que estava para celebrar o kiddushin, o casamento, com JosĂ© – buscou a orientação do cĂ©u e respondeu com a pergunta de quem deseja obedecer fielmente Ă s suas orientaçÔes: “Como?”

A resposta do anjo, jĂĄ a lemos. JĂĄ a conhecemos. A de Miryam tambĂ©m, pois antes de conceber Jesus em seu seio ela o concebera em seu coração. Ela dĂĄ ao anjo a mais bela dentre as suas respostas, repetida infinitamente ao longo de sua vida na terra e no cĂ©u: “Sim”.

O Verbo, entĂŁo, faz-se carne e santifica com sua Presença, com seu toque, infinitamente, a que jĂĄ era consagrada, a que jĂĄ era separada, Ășnica, diferente de todas as mulheres porque inteira e incondicionalmente de Deus. A Consagrada, ao possuir o Filho, foi possuĂ­da por Ele, tornou-se concretamente, em seu espĂ­rito e tambĂ©m em seu corpo, em seu passado e muito mais no agora e no futuro de sua histĂłria, a Separada, a Consagrada, a Única, a Toda exclusivamente de Deus que se fez todo dela e todo nela.

Uma anunciação Ă s portas do Terceiro MilĂȘnio.

Consagrar o mundo Ă  MĂŁe de Deus Ă© retornar a esse momento da Anunciação, como Papa, como Igreja que tem o poder de ligar e desligar as coisas na terra e no cĂ©u pela autoridade que lhe deu o prĂłprio Jesus. Separar o mundo antes do nascimento do terceiro milĂȘnio, para que seja o mundo da MĂŁe de Deus Ă© ajoelhar-se diante dela, humilde, reverente, como o anjo, e, antes que o milĂȘnio raie, pedir-lhe permissĂŁo para colocar nela, no seu ser, os bilhĂ”es de homens hoje vivos e todos os que nascerĂŁo atĂ© o fim da HistĂłria. É esta a vontade de Deus que a Igreja intermedeia.
A resposta de Maria a seus filhos, Ă  Igreja, ao Santo Padre?

“Sim! Sim! Sim!”, com a imensa, indizĂ­vel alegria da MĂŁe aos pĂ©s de nossas cruzes e em meio aos nossos pentecostes.
Em seu coração, aos pés da cruz, jå não nos havia acolhido? Em seu ventre, com Jesus, jå não havia aceitado gerar-nos? Em sua permanente contemplação de Deus e atividade intercessora no céu, não nos tinha jå feito parte de sua história gloriosa? Também a nós a Mãe gerou antes no coração e, somente depois, no próprio seio.

Com a consagração do mundo a Nossa Senhora, a Igreja, em nome de toda a humanidade, grita – a um tempo aflita, a pedir socorro; a um tempo confiante e aliviada, como quem finalmente descansa – clama, sussurra doce, emocionada, finalmente!, o seu “Sim!”, a sua parte nesta consagração nascida do coração de Deus e que aguarda, hĂĄ milhares de sĂ©culos, nosso “sim”.

A MĂŁe diz “sim!”, a Igreja responde “sim”! EstĂĄ, mais uma vez – selada a nossa parte da aliança ao pĂ© da Cruz. EstĂĄ selada nossa parte da consagração, aguardada por Deus desde que nos criou, pois Ele nos criou para si. Pela voz do JoĂŁo Amado de hoje nos unimos Ă  voz do JoĂŁo Amado da Ceia, da Cruz, de Patmos. Levamos Maria para a nossa casa e nossa casa se torna a casa dela.

Em meio Ă  nossa arrogĂąncia tecnolĂłgica, aceitamos nos tornar pequenos e descansar em seu ventre para sermos gerados, gestados com Jesus, em Jesus, por Jesus. Aceitamos, docilmente, sermos Filhos dela.

Neste imenso, intangĂ­vel momento de anunciação, pequenos, tornamo-nos frutos do “Sim” que o Pai respondeu ao “nĂŁo” do Homem. DĂłcil, obediente, feliz, a MĂŁe abraça este “Sim” acolhendo-nos nela, em seu coração, em seu ventre glorioso, dizendo a mais bela, a mais caracterĂ­stica de suas respostas: “Sim! Sim, JoĂŁo Paulo; Sim, Igreja do meu Filho; Sim, filhinhos; Sim, Pai, porque esta Ă© a tua vontade e tambĂ©m a minha, Ă© a tua e minha alegria!”

Consagrar o novo milĂȘnio Ă  Imaculada significa dizer:
“MĂŁe, eis-nos aqui. O Pai, fiel Ă s suas promessas, liga no cĂ©u o que o Papa ligou na terra. Portanto, somos teus. Todos teus. Tu, como boa mĂŁe judia, apresenta-nos, separa-nos, consagra-nos inteiramente a Deus, guarda-nos como posse exclusiva dele. Faze-nos nascer de novo, agora, nĂŁo mais no pecado, mas em ti, Imaculada. Gesta-nos em teu ventre. Faze-nos vir Ă  luz em novo parto virginal. Educa-nos para Deus, como consagrados, assim como fez Ana, a mĂŁe de Samuel, assim como fez Isabel com o pequeno JoĂŁo. Aceita nossa consagração a Deus em ti, a Consagrada. Em ti, Consagrada, somos consagrados a Deus!”
Significa, igualmente, ouvir dela:
“Fiquem tranqĂŒilos. Por fim, meu Imaculado Coração triunfarĂĄ.”

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