A questão da origem do evangelho não é uma questão definida pela história da teologia cristã. A mais antiga evidência que temos sobre o assunto provém de Irineu:
Mais tarde, João, o discípulo do Senhor, que repousava sobre o peito, também escreveu um evangelho, enquanto ele residia em Éfeso, na Ásia[1]
Muito embora tal tradição também seja mantida por Eusébio[2], a teologia do século XIX parece ter colocado obstáculos para a aceitação dessa premissa. A rejeição de que João teria escrito de Éfeso é fundamentada em algumas observações sobre a origem conceitual do evangelho. Ou seja, em conformidade com as similaridades a que se associa o evangelho, demonstra-se a localidade de onde João provavelmente tenha escrito o evangelho.
Rudolf Bultmann, por exemplo, fala que o evangelho tem basicamente três fontes principais: a fonte dos sinais, uma dos discursos e outra da paixão. Para ele, a fonte dos discursos, a principal porção do evangelho, tem influências semitas e gnósticas ao mesmo tempo. Entretanto, quando fala da origem geral do evangelho, Bultmann manifesta certa incerteza, observe:
O lugar onde foram redigidos [o evangelho e as epístolas] são desconhecidos(…) Em todo caso, a atmosfera na qual ele surgiu (como também as epístolas) é a do cristianismo oriental. Sem dúvida, o Evangelho em seu todo não foi escrito originalmente em uma língua semítica (aramaico ou siríaco) e depois traduzido para o grego, e sim, foi redigido em grego[3].
É interessante o modo como Bultmann trata do assunto da origem, pois por um lado ela é desconhecida, por outro, é certamente proveniente do cristianismo oriental. Essa incerteza resoluta de Bultmann se deve em primeiro lugar por sua rejeição à opinião de Irineu e a aceitação da similaridade do quarto evangelho com obras gnósticas. Isso o obrigou a assimilar uma origem mista para o evangelho, o associando com a linguagem semita dominada pela influência do dualismo gnóstico. Observe:
Quanto a questão  se a fonte dos ditos e discursos de Jesus (…) é traduzida do semítico ou concebida em grego, é possível dizer que em todo caso, seu estilo é o do discurso semita, ou melhor, da poesia semita como ela é conhecida das Odes de Salomão e de outros textos gnósticos[4].
Segundo a visão de Bultmann, o quarto evangelho provém de um segmento do cristianismo oriental em função de uma clara ligação com o aramaico ou o sírio, que ele até considera como possível fonte para o evangelho. Entretanto, o evangelho é tão parecido com os escritos gnósticos, que ele trata de algumas conexões gnósticas para o evangelho, além de considerar que tal escrito teria sido concebido pelas lentes do mito gnóstico do redentor. Para resolver esse dilema judaico-gnóstico, Bultmann conclui:
Se o autor provém do judaísmo, como talvez o comprovem as freqüentes expressões do rabinismo, em todos os casos, não de um judaísmo ortodoxo, me sim um judaísmo de caráter gnóstico. Especialmente seus recursos redacionais, com os quais constrói os debates, o uso de conceitos e afirmações ambíguas para provocar mal-entendidos, são indicativos do fato de que ele vive no círculo do pensamento gnóstico-dualista[5].
A visão mista de Bultmann não foi amplamente aceita, muito embora discutida e avaliada. Leonard Gopelt (1911-1973) ao analisar a linguagem do documento, demonstrou três características essenciais do evangelho: as antíteses dualistas, os ditos “Eu Sou” e a caracterização de Jesus como Logos. Segundo Gopelt, essas designações são fundamentais para se abordar o que considerou um problema histórico-religioso-filológico e teológico: a questão das fontes do evangelho.
Para Gopelt, o dualismo antitético de João, ao contrário do que supôs Bultmann, não provinha da similaridade com os documentos gnósticos do segundo século, mas com os textos de Qumrã, observe:
Em texto essênios, p. ex., depara-se por diversas vezes (p. ex. 1Qs 3,24s) com a formulação: “filhos da luz” (Jo.12.36; 1Ts.5.5; Ef.5.8), formulação essa não constatada na época pré-neotestamentária. E, a exemplo dos textos joaninos, também a literatura essênia opõe ao filhos da luz homens que permanecem nas trevas. Daí se deduz muitas vezes, em nossos dias, que a terminologia de João tivesse suas raízes no movimento batista judeu da Palestina[6].
É muito interessante que Gopelt considera a possibilidade de que o evangelho tivesse sofrido influência gnóstica, mas conclui que João não adotou uma linguagem gnóstica já formada, nem reformulou modelos gnósticos. Mas, ele também admite que João teria combatido a visão distorcida do gnosticismo, e que isso favoreceu a introdução de terminologias similares, especialmente na primeira epístola[7].
De modo interessante, mesmo a visão mais amena de Gopelt não tem sido a visão mais aceita para descrever a origem do evangelho. Kümmel, por mais estranho que possa parecer, parece não estar em acordo, nem com Bultmannn, nem com Gopelt, observe:
Contra as numerosas teorias levantadas, de que o  autor tenha adotado uma ou mais fontes escritas, não existe apenas o argumento de que a uniformidade lingüística de todo o evangelho dificilmente permite a constatação de eventuais fontes. Contradi-las sobretudo o fato de que não foram apresentados argumentos realmente convincentes sobre a natureza literariamente coerente das tradições utilizadas pelo evangelista[8].
Em outras palavras, Kümmel parece não ter encontrado razões para aceitar a idéia das muitas fontes para o evangelho, pois como podemos perceber até a opinião de Bultmann parece confusa, quanto mais os desdobramentos dela. A opinião de Gopelt, embora mais acertada que a de Bultmann, também parece exigir uma ligação muito forte de João com a seita essênia.
O fato é que todas as opiniões mencionadas partem de um pressuposto fundamental: tal evangelho não pode ter sido escrito por uma testemunha ocular, o que já temos demonstrado ser um fato. Ora, se uma testemunha ocular dos fatos passa a escrever sobre o que viu não tem necessidade de consultar outras obras para contar sua história: Ele simplesmente a conta como percebeu. Ou seja, a linguagem do evangelho fala mais sobre a pessoa do autor do que suas influências, como já temos demonstrado. A questão da linguagem de João provavelmente fala mais a respeito das pessoas a quem destina seu evangelho do que as fontes a que consultou.
Se a intenção de João, um judeu, fosse alcançar judeus na Palestina, ele simplesmente escreveria em aramaico, língua materna de ambos. Entretanto, não foi isso que João fez, ele escreveu em grego, como já tem sido claramente demonstrado pela pesquisa sobre o evangelho. Outro detalhe interessante é que ele tem o costume de usar expressões hebraicas e traduzi-las para o grego, como uma forma de explicação para pessoas que não poderiam entender o hebraico. Fato similar acontece com as constantes designações de localidades na Palestina, como se o autor intencionasse auxiliar o leitor que desconhece a região a se localizar. Todas essas considerações nos levam a concluir que o João estava a falar com um público gentio, que desconhecia o hebraico e locações na Palestina, por onde ocorreu a narrativa de Cristo.
Portanto, era de se esperar que a linguagem pudesse ser acessível a leitores gentios. Isso, certamente explicaria as similaridades com a literatura judaica, por sua origem pessoal, e helênica, por sua preocupação com seus leitores. O simples fato de João optar por relatar os fatos sob outra perspectiva, que não a dos sinóticos, já favorece a idéia de que João está a completar a tradição sinótica e a enriquecê-la.
Outro detalhe que merece ser mencionado aqui é que, em grande parte, a questão da origem do documento é realizada a partir da similaridade a que se associa o evangelho. Por isso, aqueles que defendem a similaridade do quarto evangelho com o texto Odes de Salomão, sugerem que a origem deva ser em Antioquia. Do mesmo modo, aqueles que defendem a relação com as obras essênias preferem optar por algum lugar na Palestina. Outros já sugeriram a Alexandria, pela suposta conexão entre o quarto evangelho e os escritos de Filo. Ou seja, se João se parece com alguma obra da região, ele deve ter escrito de lá.
Contudo isso não é uma argumentação válida, caso fosse, teríamos certeza quais são as obras de Orígenes que foram escritas em Alexandria e quais foram escritas em Antioquia, uma vez que escreveu de ambos os lugares. Outro detalhe normalmente ignorado é que as influências que um autor sofre não determinam sua região geográfica, mas o tipo de literatura ou ideologia a que o autor estava exposto. Por isso, não é impossível que João escrevesse um evangelho de Éfeso, embora deixasse claro suas raízes judaicas ao mesmo tempo que escrevia para gentios. Em outras palavras, a análise literária não tem o poder de definir a região que João estava quando escreveu.
Vale a pena ser dito que os montanistas da Frígia no segundo século, apelaram ao uso do evangelho de João por causa do modo como a doutrina era exposta. Essa proximidade geográfica, parece favorecer a idéia de que o evangelho tenha sido originalmente escrito naquela região. Favorece essa conclusão, o fato de que Atos narra entre os capítulos 18e 19 que ainda havia em Éfeso um grupo de discípulos de João Batista. Normalmente se defende que os acontecimentos narrados em Atos teriam acontecido entre 50 e 55 d.C. Portanto, é plausível que a similaridade com os escritos essênios tenham o propósito de alcançar pessoas ainda sob influência do doutrinamento de João Batista. Soma-se a isso, o fato de o quarto evangelho deixar tão evidente um papel secundário e pequeno para João Batista, e enfatizar o seu testemunho a respeito de Cristo. Portanto, embora não se possa afirmar conclusivamente, parece seguro assumir que Irineu está correto sobre a origem do Quarto Evangelho foi em Éfeso, e que João escreve primeiramente para gentios cristãos que precisavam ser fortalecidos em sua fé.
É importante lembrar o leitor que, é bem provável que o pano de fundo conceitual mais apropriado para o evangelho seja o próprio Antigo Testamento e o ambiente da religião judaica ortodoxa do primeiro século, assunto que trataremos quando tratarmos da Teologia do Autor.

[1] Irineu, Opt. Cit., III, 1, n. 2
[2] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica. 4.14.3-8
[3] Rudolf Bultmann, Teologia do Novo Testamento. pp.438.
[4] Idem, Ibid.
[5] Idem, pp.442.
[6] Leonard Gopelt, Teologia do Novo Testamento. pp.513-4.
[7] Idem, pp. 514
[8] Werner Gerog Kümmel, Síntese Teológica do Novo Testamento. pp.318.

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