Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb.
Nº 489 – Ano 2003 – Pág. 121.

ANJOS CAÍDOS E AS ORIGENS DO MAL

por Elizabeth Clare Prophet

Em síntese: Este livro pretende restaurar uma concepção judaica – professada pelo apócrifo livro de Enoque – segundo a qual o mal começou no mundo quando anjos perversos se encarnam e tiveram contato sexual com mulheres, nascendo daí nefilim ou gigantes. Esses anjos maus, ditos “Vigilantes” ensinaram à humanidade artes mágicas e perversas. – Ora tal tese, que a autora do livro julga endossada por Jesus Cristo, é descabida, pois a encarnação de anjos é um postulado gratuito e pouco condizente com a Sabedoria Divina. As semelhanças apontadas entre o livro de Enoque e os Evangelhos são vagas e não convencem.

A Sra. Elizabeth Clare Prophet é uma estudiosa da Religiosa, que tem viajado pelos Estados Unidos, dando palestras sobre anjos, profecias, reencarnação... Entre os seus escritos, encontra-se a obra traduzida para o português com o título “Anjos Caídos e as origens do Mal”¹. Recorre ao apócrifo livro de Henoque, na esteira dos autores que atualmente privilegiam a literatura apócrifa. – Detenhamo-nos no conteúdo do livro.

1. A tese da autora

A Sra. Elizabeth Prophet procura reabilitar a proposição do apócrifo livro de Henoque segundo a qual o mal começou no mundo quando anjos encarnados vieram à Terra e tiveram cópula carnal com mulheres, dando origem a gigantes (nefilim). Esses anjos maus continuam presentes na história da humanidade e são responsáveis por desgraças ainda hoje ocorrentes:

“Com base em evidências convincentes retiradas de diversas fontes, nossa tese confirma o Livro de Enoque: existem realmente anjos caídos, eles encarnaram na Terra e corromperam as almas do seu povo e eles serão julgados pelo Eleito no dia do retorno de seus servos eleitos. Nossa tese deve também, por força da lógica, mostrar que estes anjos caídos (juntamente com a progênie dos Nefilim, expulsos do céu por São Miguel Arcanjo), continuaram a encarnar na Terra ininterruptamente durante pelo menos meio milhão de anos” (p. 14s).²

Jesus terá aprovado e ensinado as explanações do livro de Enoque, conforme afirma a autora à p. 33:

“Acredito que Jesus assumiu o manto de Enoque como mensageiro do Ancião dos Dias e da sua profecia sobre os Vigilantes. Acredito que o filho de Davi veio com a autoridade do nosso Pai Enoque, que disse: “Assim como ele criou e deu ao homem o poder de entender a palavra de sabedoria, criou e deu também a eles o poder de reprovar os Vigilantes, a progênie do céu”. De fato, Jesus veio cumprir a lei e a profecia do julgamento pelo Verbo encarnado!”.

À p. 32 se lê:

“A idéia de que os ensinamentos de Jesus dependiam de uma obra teológica anterior e de que não eram completamente novos ou nunca antes revelados incomodou algumas pessoas. Em 1891, o reverendo William J. Deane protestou contra a associação entre os ensinamentos de Jesus e o recém-publicado Livro de Enoque, afirmando com indignação: “Somos obrigados a acreditar que nosso Senhor e Seus apóstolos, consciente ou inconscientemente, acrescentaram nas suas falas e escritos idéias e expressões tiradas de Enoque”.

Os Apóstolos, em seus escritos neotestamentários, terão professado as mesmas idéias do apócrifo; cf. pp. 38s:

“A história de Paulo sobre o “homem em Cristo” que foi arrebatado até o terceiro céu dentro ou fora do corpo (Paulo não dá esta informação) pode referir-se à descrição que Enoque faz dos vários céus, incluída no livro principal de Enoque e citada no Livro de Segredos de Enoque...

O apóstolo João, autor e amanuense para a Revelação bíblica de Jesus Cristo, o Livro do Apocalipse, chegou ainda mais perto do simbolismo e das descrições de Enoque. Muitas das suas visões, familiares aos leitores da Bíblia, podem também ser encontradas no Livro de Enoque: “Senhor dos senhores, Rei dos reis”, o demônio sendo lançado no lago de fogo, a visão dos sete Espíritos de Deus, a árvore cujos frutos estão reservados aos eleitos, as quatro bestas ao redor do trono e o livro da vida”.

Os antigos escritores cristãos até o século V em geral aceitaram a tese da cópula carnal, isto se deve ao fato de não terem noção clara do que é espiritualidade (não corporeidade), não à crença na encarnação dos anjos. – Júlio Africano (200-245) foi o primeiro a contestar a tradicional versão do livro de Henoque.

O golpe definitivo contra tal hipótese foi desferido por S. Agostinho no século V:

“O assunto foi finalmente encerrado com a argumentação lógica e técnica de Santo Agostinho (354-430), rejeitando a narrativa da queda dos anjos e do seu encontro com as mulheres e defendendo a idéia de que, para a natureza angélica, tal feito seria absolutamente improvável” (p. 66).

“Agostinho afirma que a frase “filhos de Deus” no Gênesis 6 refere-se aos filhos de Set que tomaram como esposas as filhas de Caim, chegando à mesma conclusão de Júlio Africano – um atalho usado pela maioria dos padres da Igreja a fim de não admitir a encarnação dos anjos” (p. 67)¹.

Na primeira e na quarta capas do livro lê-se que “a revelação do livro de Henoque foi inadvertidamente omitida e desvirtuada pela Igreja através da história”. Toda via no corpo do livro não se encontra explicitação desses dizeres. A “revelação” de Henoque foi posta de lado pelo bom senso mesmo e a lógica das gerações cristãs.

Pergunta-se agora:

2. Que pensar?

Antes do mais, convém examinar

2.1. O livro de Henoque: que é?

Henoque (Gn 5, 21-24) é o sétimo personagem da linhagem dos setitas, filho de Jared e pai de Matusalém; é o menos longevo de todos os da série, pois viveu apenas 365 anos, após os quais foi arrebatado por Deus sem provar a morte. Tornou-se assim muito caro à tradição judaica.

Os rabinos não discutiram o gênero literário desta secção, mas acrescentaram aos dados bíblicos as próprias elucubrações: Henoque terá recebido de Deus a autorização para revelar aos homens o juízo que tocará a anjos maus que se perverteram com mulheres e ensinaram artes mágicas aos homens.

O livro que daí resultou, data dos século II/I a.C.; foi escrito em hebraico (capítulos 1-5 e 37-108) e aramaico (cap. 6-36). O texto original perdeu-se. Existem, porém, traduções diversas (grega, etíope, latina).

A obra consta de escritos compilados do seguinte modo:

- discurso de Henoque sobre o juízo final, que deve fazer tremer os pecadores; cap. 1-5;

- descrição da queda dos anjos e de viagens pelo paraíso terrestre e o inferno; cap. 6-36;

- discurso das parábolas, que ilustram a sorte póstuma dos justos e a dos pecadores, com referência ao Messias dito “Eleito” e “Filho do Homem”; cap. 37-71;

- discurso de astronomia, que descreve o curso do Sol e o da Lua; cap. 72-82;

- livro das visões, que refere a história do mundo desde Adão até Moisés; cap. 83-90;

- livro da edificação, portador de exortações diversas; cap. 91-105.

Tudo se encerra com um epílogo; cap. 106-108.

Existem outrossim o Livro de Henoque Eslavo ou o Livro dos Segredos de Henoque. Narra a elevação de Henoque aos céus, onde ele recebe o conhecimento das regiões celestes e dos seis mistérios; Deus mesmo lhe revela como criou o mundo e lhe revela o futuro. É obra de um judeu, que a redigiu em grego no início do século I a.C. em Jerusalém.

2.2. Valor histórico

O livro de Henoque gozou de certa autoridade entre os antigos escritores cristãos. A epístola canônica de S. Judas 14 o cita, mas nem por isto o tem colo livro inspirado¹. Todavia não há como aceitar a explicação proposta para a origem do mal: os anjos não têm corpo nem se podem encarnar; por conseguinte jamais poderão copular com mulheres. Muito sabiamente Júlio Africano percebeu esta falha da teoria de Henoque e seus seguidores reconsideraram a interpretação dada a Gn 6, 4: os filhos de Deus seriam os setitas e as filhas dos homens seriam as cainitas.

Verdade é que Jd 6 e 2Pd 2, 4 citam o castigo prometido por Henoque aos anjos prevaricadores; isto, porém, não basta para dizer que tal livro é inspirado; apenas se pode concluir que o livro de Henoque oferecia argumento válido para corroborar quanto São Pedro e São Judas queriam dizer.

A Sra. Prophet apresenta paralelos entre os Evangelhos e Henoque, deduzindo daí a dependência de Jesus frente ao apócrifo judaico! – Na verdade, trata-se de paralelos tão vagos que não podem servir de argumento. A pregação de Jesus não depende de Henoque. De resto, a Sra. Elizabeth Prophet professa a reencarnação e o panteísmo (p. 335) – o que talvez lhe dificulte compreender a mensagem de Jesus.

Em suma o livro em foco é mais uma expressão da investigação dos apócrifos como se fossem arautos de um Cristianismo renovado e surpreendente, quando na verdade vêm a ser o testemunho do modo de pensar (por vezes, fantasioso e simplório) dos antigos judeus e cristãos.

Para o fiel católico, a origem do mal está no pecado dos primeiros pais. Estes foram elevados ao estado de justiça original, mas nele não perseveraram em razão de sua soberba; quiseram ser como Deus, árbitros do bem e do mal. Disseram Não a Deus – o que os despojou da riqueza da graça e os tornou sujeitos à morte violenta e seus precursores. A humanidade sofre as conseqüências desta culpa, já que há solidariedade entre as gerações. Todavia, logo após a culpa e sua punição, é prometido o Salvador (Gn 3, 15) o que envolve a própria realidade do pecado e de suas conseqüências num plano de amor e misericórdia de Deus para com a criatura.

APÊNDICE

DO LIVRO DE HENOQUE

Capítulo 7

1. Quando naqueles dias os filhos do homem se multiplicaram, suas filhas nasceram elegantes e belas.

2. E quando os anjos, os filhos do céu, contemplaram-nas, ficaram enamorados, dizendo uns aos outros: Vamos, escolhamos para nós esposas entre a progênie dos homens para com elas gerarmos crianças.

3. Então Samyaza, seu líder, disse: Temo que talvez não possais realizar esta tarefa;

4. E que sozinho sofrerei as conseqüências de um crime tão vergonhoso.

5. Mas eles lhe responderam: nós todos juramos;

6. E nos ligamos por execrações mútuas, para que não modifiquemos nossa intenção de executar o que resolvemos.

7. Fizeram juntos este juramento e se uniram em execrações mútuas. Eram ao todo duzentos, que desceram sobre Ardis, no topo do monte Armon.

8. Aquela montanha recebeu o nome de Armon, pois lá juraram e se uniram.

9. Estes são os nomes de seus chefes: Samyaza, que era o líder, Urakabarameel, Akibeel, Tamiel, Ramuel, Danel, Azkeel, Sarakmyal, Asael, Armers, Batraal, Anane, Zavebe, Samsaveel, Ertael, Turel, Yomyael, Arazael. Eles comandaram os duzentos anjos que juntos os seguiram.

10. Tomaram esposas, cada um escolhendo a sua. Aproximaram-se delas e com elas coabitaram, ensinando-lhes feitiçaria, encantamento e as propriedades das raízes e árvores.

11. As mulheres deram à luz os gigantes,

12. Cuja estatura atingia trezentos côvados. Eles comeram tudo que havia sido produzido pelo trabalho dos homens até que se tornou impossível alimentá-los.

13. Quando se voltaram contra os homens, para devorá-los.

14. E começaram a ferir os pássaros, bestas, répteis e peixes para comer sua carne e beber seu sangue.

15. Então a terra reprovou os maldosos.

Capítulo 8

1. Além disso, Azazyel ensinou os homens a fabricar espadas, facas e escudos, ensinou-os a produzir espelhos, braceletes e ornamentos para as mulheres, a utilizar pintura para embelezar as sobrancelhas e pedras de todos os tipos e valores, a manusear toda sorte de corantes, fazendo todas essas coisas para alterar o mundo.

2. A impiedade aumentou, a fornicação multiplicou-se, e eles transgrediram e corromperam todos os seus caminhos..

3. Amazarak ensinava todos os encantos e propriedades das raízes;

4. Armers ensinava feitiçarias;

5. Barkaval ensinava observação de estrelas;

6. Akibeel ensinava signos;

7. E Asaradel ensinava sobre o movimento da luz;

8. E os homens, sendo destruídos clamaram e sua voz chegou até os céus.

¹ Ed. Nova Era, Rio de Janeiro 2002, 135 x 210 mm, 475 pp.
² Ver em Apêndice (pp. 121s) o texto do livro de Henoque que parece fundamentar estes dizeres.
¹ Eis o texto de Gn 6, 1-4 que vem ao caso:
“Quando os homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradavam... Ora naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos; os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos”.
Neste texto a tradição judaica via os filhos de Deus como anjos e as filhas dos homens como mulheres. Quanto aos nefilim ou gigantes, são algo de difícil interpretação. Havia de fato gigantes sobre a terra conforme Dt 1, 28; Nm 13, 33; 1Sm 17, 34-54.
¹ São Paulo cita o autor pagão Arato em At 17, 28, e em Tt 1, 12 Epimênides, sem pretender colocá-los no cânon bíblico.

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