Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Autor: Estevão Bettencourt, Osb.,
Nº 191 - Ano 1975, Pág. 490.

Em síntese: Dadas as recentes hesitações de pensadores sobre a existência e a ação do demônio, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé pediu a um de seus peritos estudasse o assunto; donde resultou um documento publicado no jornal “L’Osservatore Romano” de 4/07/75 (ed. Francesa) pp. 5-8.

O autor, examinando o texto do Novo Testamento, observa que os judeus não tinham crença definida a respeito da existência do demônio (os fariseus a admitiam, ao passo que os saduceus a negavam); por conseguinte, não se deveria dizer que Jesus, ao afirmar claramente no Evangelho a realidade e a ação do Maligno, se tenha adaptado à mentalidade dos judeus. Cristo era assaz independente em relação a esta; veja, por exemplo, o sermão da montanha (Mt 5-7).

Passando à Tradição cristã, o autor se detém principalmente sobre o texto do Concílio Ecumênico do Latrão IV (1215), evidenciando que se trata de uma profissão oficial de fé, e não de uma declaração disciplinar ou reformável da Igreja. De resto, o Concílio do Vaticano II, nas Constituições “Lumen Gentium” e “Gaudium et Spes”, reiterou a crença na existência e na ação de Satanás.

Se hoje em dia a Igreja, fazendo eco à constante Tradição, reafirma a realidade do Maligno, Ela não o faz para restaurar filósofos dualistas ou crendices e teses de magia, nem para isentar o homem de suas responsabilidades. Apenas tenciona ser fiel ao Evangelho e lembrar ao homem, fascinado pela técnica contemporânea, que nem tudo se explica natural e cientificamente; há, sim, o mistério da iniqüidade, ao qual nenhum ser humano sucumbe se não o quer, pois foi libertado por Cristo, que venceu o Príncipe deste mundo.

Comentário: O jornal “L”Osservatore Romano”, em sua edição francesa de 4/07/1975, publicou um estudo elaborado por perito em nome da S. Congregação para a Doutrina da Fé (Roma) a respeito da existência do demônio. A mencionada S. Congregação “recomenda vivamente esse estudo como base segura para reafirmar a doutrina do Magistério sobre o tema “Fé cristã e demonologia” (1. c., p. 5).

Verdade é que a existência e a ação do demônio no mundo não constituem artigos centrais ou principais da doutrina de fé católica. Esta se volta, antes do mais, para Deus e a riqueza de sua vida, Jesus Cristo, a S. Igreja, os sacramentos e sua eficácia santificadora, e a vida eterna. Trata-se de uma Boa-Nova, que eleva e regozija os homens. Todavia em 1973 e 1974 o romance e o filme “O Exorcista” puseram em foco o demônio suscitando questões bíblicas, teológicas, filosóficas, psicológicas ... relacionadas com o assunto. Eis por que a Santa Sé houve por bem mandar elaborar a interessante pesquisa publicada oficialmente no “L’Osservatore Romano”. Eis também por que nos parece oportuno comunicar aos nossos leitores, em termos sucintos, o conteúdo desse amplo estudo.

1. O problema

A existência do demônio, constantemente afirmada pela Igreja através dos séculos, hoje em dia tem sido discutida.

1) Há os que, estudando as Escrituras Sagradas, não ousam afirmar ou negar algo a respeito, ao passo que outros rejeitam explicitamente a realidade do demônio.

Em particular, há quem afirme que as palavras de Jesus, em caso algum, são suficientes para assegurar a existência dos anjos maus. O que os Evangelhos atribuem a Jesus sobre o assunto, não proviria de Jesus Cristo mesmo, mas de escritos judaicos anteriores ou de idéias de cristãos posteriores a Cristo.

2) Outros estudiosos reconhecem o peso das afirmações bíblicas concernentes ao demônio, mas julgam ser inaceitáveis aos homens de hoje, mesmo aos cristãos. Por conseguinte, rejeitam-nas.

3) Outra corrente assevera que a noção de Satã, qualquer que seja a sua origem, perdeu hoje a sua importância. Quem a queira hoje propor, cai em descrédito.

4) Há ainda aqueles para os quais os nomes de Satã e diabo são meras reminiscências míticas, que significam de maneira dramática a ação do mal e do pecado sobre o gênero humano. Procure-se outra maneira - dizem - de incutir aos cristãos o dever de lutar contra as expressões do mal no mundo.

Tais teses, difundidas com aparato de erudição em revistas e dicionários de teologia, vêm perturbando os cristãos. Enquanto uns se sentem inseguros e vacilantes, os outros as rejeitam e, perplexos, interrogam a que ponto chegará o processo de “desmitização” empreendido em nome de certa corrente de filosofia e hermenêutica.

A fim de elucidar a questão, o estudioso começa por examinar os textos do Novo Testamento.
1. O testemunho do Novo Testamento

2.1. Observação preliminar

Seria precipitado afirmar que Jesus, ao falar do demônio, se tenha simplesmente adaptado à mentalidade dos judeus contemporâneos. Estes, na verdade, divergiam entre si sobre esse assunto. Enquanto os fariseus admitiam os anjos e demônios, os saduceus recusavam a realidade dos mesmos; cf. At 23, 8. Donde se vê que não se deveria crer facilmente que Jesus ao expulsar os demônios, e os escritores do Novo Testamento, ao relatarem tal fato, estavam simplesmente adotando concepções e práticas do seu tempo. Embora Jesus compartilhasse a cultura da sua época, ultrapassava-a como Deus e, quando necessário, mostrava-se independente em relação à mesma; tenha-se em vista, por exemplo, o sermão da montanha (Mt 5-7), em que o Senhor desconcerta os seus ouvintes, propondo uma “justiça melhor” do que a dos fariseus e escribas.

Mais: se Jesus se tivesse acomodado a crendices de correntes judaicas antigas sem as abonar interiormente, teria traído a sua missão e o seu ser divino. Ele veio para dar testemunho da verdade, como o afirma em Jo 18,37.

2.2. O testemunho do próprio Cristo

Jesus iniciou o seu ministério público aceitando ser tentado pelo demônio; cf. Mt 4,111; Mc 1,12s; Lc 4,1-13.

Logo no sermão da montanha (Mt 5-7), quis que os seus discípulos se acautelassem contra o Maligno; cf. Mt 5,37. No final do “Pai Nosso”, aparece a cláusula “Mas livrai-nos do poneróu”, onde a palavra poneróu tem sido - e até hoje é - entendida como alusão ao Maligno; cf. Mt 6,13 e comentários (tanto modernos como antigos) do “Pai Nosso”.

Em suas parábolas, Jesus atribuiu a Satã os obstáculos encontrados pela pregação da Palavra de Deus, assim como o joio disseminado no campo de trigo; cf. Mt 13,18. 28. 38s. O pecado significa “fazer as obras do diabo”, que é homicida e mentiroso desde o início e ao qual se filia o pecador (cf. Jo 8,44). Aproximando-se a Paixão, Cristo declarou a Simão Pedro que Satanás pedira os apóstolos para os joeirar, mas Ele, o Senhor, intercedera por Pedro, a fim de que a fé deste não desfalecesse; cf. Lc 22, 31. Ao deixar o cenáculo, o Senhor afirmou que a vinda do “Príncipe deste mundo” era iminente; sabia, porém, que este já se achava condenado; cf. Jo 14, 30; 16, 11. Como que para testemunhar esta verdade em termos sensíveis, Jesus expulsava os demônios dos possessos; estas curas de endemoninhados esclareciam o sentido da missão do Senhor, como Ele mesmo declarava: “Se é pelo Espírito de Deus expulso os demônios, chegou ate vós o Reino de Deus” (Mt 12,28).

A esta altura, comenta o autor do estudo citado:

“Estes fatos e estas declarações ... não são o resultado do acaso. Não é possível tratá-los como dados fabulosos que deveríamos desmitizar. Se não, teríamos de admitir que nessas horas críticas a consciência de Jesus (cuja lucidez e autodomínio perante os juízes são atestados pelos Evangelhos) era vítima de fantasias ilusórias e que a sua palavra carecia de firmeza. Ora isto contradiria às impressões colhidas pelos primeiros ouvintes e pelos atuais leitores dos Evangelhos. Por conseguinte, impõe-se a conclusão: Satã, que Jesus enfrentou nos seus exorcismos,... que Jesus encontrou no deserto e na sua Paixão, não pode ser o simples produto da faculdade humana de forjar e projetar fábulas, nem é o resquício aberrante de uma linguagem de cultura primitiva” (art. Citado, p. 5, colunas 3 e 4).

2.3. Os demais escritos do Novo Testamento

Nas cartas paulinas, Satã aparece como “o deus deste mundo” (2 Cor 4,4). Age na história através do que o apóstolo chama “o mistério da iniqüidade” (2Ts 2,7); exerce também a sua influência mediante a incredulidade que recusa o Senhor Jesus (2Cor 4,4),... mediante a aberração dos ídolos (1Cor 10,19s ; Rm 1,21s), a sedução dos erros que ameaçam a fidelidade da Igreja ao Cristo, seu esposo (2Cor 11,3).

Quanto ao Apocalipse, é o livro em que por excelência o leitor depreende o sentido da história: esta vem a ser o grande embate entre o Senhor Jesus e Satã, terminando com a vitória do Cristo ressuscitado; leve-se em conta principalmente o capítulo 12 desse escrito, em que os nomes e símbolos do adversário são elucidados.

Após a análise dos textos bíblicos, o documento em foco considera os testemunhos da Tradição e do Magistério da Igreja. É o que passamos a transmitir em síntese.

3. Os testemunhos da Tradição

Os antigos escritores da Igreja, desde o século II, professaram a convicção, incutida pela Bíblia, de que o demônio é o adversário da obra de cristo e do gênero humano.

Os escritores que elucidaram o desígnio de Deus sobre a história, puseram em foco a ação do Maligno; muito especialmente o fizeram S. Ireneu (+ 202 aproximadamente), Tertuliano (+ após 220), que refutaram o dualismo gnóstico e o marcionismo. - Para S. Ireneu, por exemplo, o diabo é um anjo decaído, que Cristo quis enfrentar desde o início do seu ministério; assumiu assim a luta que aos homens competia e compete travar (Adv. Haer. V, 21,2; 24,3).

Pode-se mesmo dizer que quase não há escritor antigo que não se tenha referido ao demônio, afirmando a sua ação no mundo.

No século V, S. Agostinho (+ 430) apresentou a visão das duas cidades - a de Deus e a do diabo -, que tiveram origem no instante em que os anjos maus se declararam infiéis ao Senhor (“De Civitate Dei” XI, 9). A sociedade dos homens que pecam, parecia-lhe ser o “corpo místico” do diabo (“De Genesi ad litteram” XI, 24, 31) - imagem esta que ocorre mais tarde nos “Moralia in Job” de S; Gregório Magno (+ 604).

Em suma, a doutrina dos Padres ou escritores antigos da Igreja fez eco fiel às diretrizes do Novo Testamento.

4. O Magistério

No decorrer dos seus quase vinte séculos de história, o Magistério da Igreja poucas vezes se pronunciou sobre o demônio em termos dogmáticos. A razão disto é que tais pronunciamentos supõem sempre especial ocasião (o surto de alguma heresia, uma controvérsia...). Ora em duas fases houve, de fato, motivo para que a Igreja proferisse explicitamente a sua doutrina sobre o demônio: a primeira ocorreu no século VI (563 ou 566), quando o Maniqueísmo e o Priscilianismo ensejaram uma afirmação solene do Concílio regional de Braga I (Portugal). A segunda se deu no século XIII (1215), quando o Concílio ecumênico do Latrão IV se opôs ao novo surto de Maniqueísmo encabeçado pelos cátaros ou albigenses.

O Concílio de Braga I, retomando os ensinamentos dos mestres dos séculos anteriores (principalmente os de S. Leão Magno, + 461), assim se exprimia no seu cânon 7:

“Se alguém disser que o Diabo não foi primeiramente um anjo bom feito por Deus e que a sua natureza não foi a obra de Deus; se, ao contrário, afirma que o diabo saiu do caos e das trevas e que não tem autor do seu ser, mas é ele mesmo o princípio e a substância do Mal, como disseram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema” (Denzinger-Schönmetzer, “Enquirídio” nº 457 [237]).

O Concílio não tinha necessidade de afirmar a existência do demônio, pois esta não era controvertida então; mas, supondo-a, professou que o demônio é uma criatura de Deus inicialmente boa; a sua perversão há de ser explicada por abuso da liberdade de arbítrio desse anjo infiel a Deus.

No século XI o surto do Catarismo ou dos Cátaros, também ditos “Albigenses”, que reavivavam o maniqueísmo, provocou outra Declaração do Magistério da Igreja, desta vez reunido no Concílio ecumênico do Latrão IV (1215). Eis o teor do documento então redigido:

“Cremos firmemente e professamos simplesmente... um Princípio único do universo, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, espirituais e corporais: por sua onipotência, desde o começo do tempo, Ele criou do nada uma e outra criatura - a espiritual e a corporal -, a saber: os anjos e o mundo. A seguir, criou o homem, que se constitui de uma e de outra, pois é composto de espírito e corpo. Pois o diabo e os outros demônios foram criados por Deus naturalmente bons, mas por si mesmos tornaram-se maus. Quanto ao homem, pecou por instigação do diabo” (Denzinger-Schönmetzer, “Enquirídio” 800 [428]).

O problema ao qual esta declaração devia responder em sua época, era, como foi dito, o do dualismo. Com efeito, os hereges julgavam haver um princípio subsistente do mal oposto a Deus, que seria o princípio do bem. Em vista disto é que o Concílio declara haver um só Criador, ao qual se reduzem até mesmos os anjos maus; estes, embora bons por natureza, se perverteram por abuso de sua liberdade. Assim o Concílio não define explicitamente a existência dos demônios, mas supõe-na aceita e indiscutida; apenas se interessa por explicá-la - o que equivale implicitamente a uma afirmação da existência dos anjos maus.

O Concílio não diz quantos são nem como pecaram nem qual o alcance da sua ação entre os homens, pois estas questões ficavam fora do questionamento levantado pelos cátaros. - A afirmação do Concílio do Latrão IV é de importância capital; não tem valor disciplinar apenas, mas seu estilo é o de uma solene profissão, que exprime estritamente a fé da Igreja oficial e universal. Os procedentes desta formulação dogmática se encontram esparsos por toda a Tradição cristã (escritores e Concílio), que o recente documento da S. Congregação para a Doutrina da Fé passa em revista, minuciosa e exaustivamente.

O mesmo estudo cita ainda os Concílios ecumênicos de Florença (1439-1445) e Trento (1545-1563), que se pronunciaram em consonância com o do Latrão IV. E finalmente lembra que também o Concílio do Vaticano II professou a existência e a ação do demônio, chegando mesmo a referir-se aos milagres e exorcismos praticados por Jesus como sendo sinais de que o Reino de Deus chegara sobre a terra:

“Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade, iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor (cf. Mt 24,13; 13,24-30. 36-43). Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus” (Const. “Gaudium et Spes” nº 37).

“O mistério da Santa Igreja manifesta-se na sua própria fundação. Pois o Senhor Jesus iniciou sua Igreja pregando a Boa-Nova, isto é, o advento do Reino de Deus prometido nas Escrituras havia séculos... Este Reino manifesta-se lucidamente aos homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo. Pois a palavra do Senhor é comparada à semente semeada no campo (Mc 4,14): os que a ouvem com fé e são contados no número da pequena grei de Cristo (Lc 12,32), receberam o próprio Reino: depois, por sua própria força e semente germina e cresce até o tempo da messe (cf. Mc 4,26-29). Também os milagres de Jesus comprovam que o Reino já chegou à terra: “Se expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente é chegado a vós o Reino de Deus” (Lc 11,20; cf. Mt 12,28). Sobretudo, porém, o Reino é manifestado na própria pessoa de Cristo. Filho de Deus e Filho do homem, que veio “para servir e dar a sua vida em redenção por muitos” (Mc 10,45)” (Const. “Lúmen Gentium” nº 5).

Podem-se citar ainda as Constituições “Lúmen Gentium” 35a. 48d, “Gaudium et Spes” 37b e o decreto “Ad gentes” 3.14.

Examinemos ainda outro documentário da teologia da Igreja.

5. O testemunho da Liturgia

Os textos (orações, hinos, invocações) utilizados no culto divino ou na Liturgia são expressões da fé oficial da Igreja ou do povo de Deus. Eis porque interessa averiguar o testemunho dos mesmos no tocante ao demônio:

A Liturgia oriental é, sem dúvida, exuberante em suas alusões a Satanás e à ação diabólica entre os homens. A Liturgia latina, que também era rica em tais menções, passou ultimamente por reformas, que a simplificaram.

Assim já não se confere habitualmente o ministério do exorcismo (poder de expulsar os demônios), que antes da reforma constituía uma Ordem menor. Apenas em casos esporádicos é facultado aos bispos pedir à Santa Sé a ordenação de exorcistas para as dioceses respectivas. Isto, porém, não quer dizer que os sacerdotes não possam ou não devam praticar o exorcismo, desde que as circunstâncias o indiquem. Todavia a reforma litúrgica neste ponto manifesta que a Igreja não atribui aos exorcismos a importância que eles tinham nos primeiros séculos.

No rito de batismo de crianças os vários exorcismos não foram de todo supressos, como se tem dito, mas, sim, substituídos por uma única fórmula de exorcismo (“oratio exorcismi”), que antecede a unção pré-batismal. Esta prece não significa que a Igreja julgue serem as criancinhas possessas do demônio; mas Ela crê que, antes do Batismo, todo ser humano (adulto ou criança) traz em si a marca do pecado e da ação de Satanás.

No ritual de iniciação cristã dos adultos, também se registram modificações. O demônio não é interpelado com a veemência de outrora. Todavia não faltam aí preces de exorcismo “maiores” e “menores” disseminadas por toda a extensão do catecumenato, sendo que algumas dessas preces foram aí introduzidas precisamente pela reforma litúrgica.

No novo rito de Unção dos Enfermos, pede o sacerdote que o paciente “seja livre de todo pecado e tentação”. O óleo santo é considerado “proteção do corpo, da alma e do espírito”. As preces de encomendação dos agonizantes pedem a Cristo, queira receber o moribundo entre as suas ovelhas e os seus eleitos; não mencionam demônio nem inferno, a fim de evitar traumatismos desnecessários, mas aludem discretamente ao mistério da iniqüidade como a fé da Igreja sempre o entendeu.

Deve-se ainda referir que na Liturgia de vários domingos do ano a Igreja lê seções do Evangelho que narram a ação do demônio e a luta de Jesus contra o mesmo; assim, por exemplo, no primeiro domingo da Quaresma ocorre sempre o episódio das tentações de Jesus.

Vê-se, pois, que também através da Liturgia se depreende o pensamento da Igreja relativo à existência e à sanha do demônio neste mundo.

Resta agora, deste breve percurso de dados, tirar uma

6. Conclusão

Não há dúvida de que a Igreja tenciona hoje reafirmar, como sempre fez, a realidade do Maligno e dos anjos maus que o seguiram. A Igreja, com isto, não deseja, em absoluto, restaurar a mentalidade dualista ou maniquéia de épocas passadas proposto pelas Escrituras, pelo próprio Cristo e por toda a Tradição cristã. É questão de fidelidade da Igreja ao Evangelho e às suas exigências. Tenham-se em vista as palavras de Paulo VI proferidas aos 15/XI/72:

“Afasta-se do quadro do ensinamento bíblico e da Igreja aquele que recusa reconhecer a existência do diabo... Ou aquele que admite seja este um princípio existente por si, que não teria origem em Deus, como a tem toda criatura... Ou quem explica o demônio como sendo uma pseudo-realidade, uma personificação conceitual e imaginária das causas desconhecidas de nossas misérias” (audiência geral de 15/XI/72; ver também homilia de Paulo VI aos 29/VI/72).

Professando consciente a existência e a ação de Satanás, a Igreja não deixa de afirmar a grandeza e a liberdade do homem, assim como a responsabilidade deste diante das tarefas que lhe incubem. São contrárias à fé quaisquer teses de superstição, magia ou fatalismo, como também qualquer teoria que insinue a capitulação do homem perante o mal.

Mais: sempre que se fala de intervenção diabólica, a Igreja exerce o seu senso crítico (como se dá também em se tratando de milagres); reserva, prudência e discrição são indispensáveis no caso, a fim de se evitarem concessões à imaginação ou à alucinação doentia.

De outro lado, a Igreja julga que é sempre oportuna a exortação de São Pedro Apóstolo a que os fiéis se conservem sóbrios e vigilantes frente à ação do Maligno. O fascínio das conquistas da ciência e da técnica sugere ao homem que já não há mistérios ou que todos os problemas da história se explicam e resolvem racionalmente - o que é ilusório. Despertando a consciência dos fiéis para o “mistério da iniqüidade” (2Ts 2,7), a Igreja deseja incutir-lhes a modéstia humilde, que é outra faceta da procura da verdade e da autêntica conduta do homem inteligente.

Pertence ainda ao ensinamento da Igreja lembrar que Satanás existe, mas é semelhante a um cão acorrentado, que pode ladrar, mas não morde senão a quem dele se aproxima voluntariamente (S. Agostinho). O demônio pode tentar, não porém, arrancar o consentimento do homem; este estará sempre apto a resistir-lhe, principalmente se recorrer à oração e à vigilância, pois Deus não permite seja o homem tentado acima de suas forças (1Cor 10,13). Toda tentação tem sentido providencial, contribuindo, nos desígnios de Deus, para acrisolar as virtudes e fortalecer a fidelidade da criatura humana.

Em suma, a crença na existência e na ação do demônio não é verdade de primeira linha no horizonte da fé cristã, mas é função da obra da Redenção. É inseparável de firme confiança no Cristo Jesus, que venceu o Príncipe deste mundo e a todos os homens oferece a salvação adquirida por seu sangue.

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