D. Estevão Bettencourt, osb.

Em síntese: A Igreja sabe que a revelação das verdades da fé se encerrou com a geração dos Apóstolos. De então por diante nenhum artigo de fé pode ser acrescentado ao Credo. Todavia a Igreja admite a possibilidade de revelações particulares do Sagrado Coração de Jesus, da Virgem Maria ou de outros Santos; tais aparições têm por objetivo lembrar aos homens a mensagem do Evangelho, principalmente o dever de orar e converter-se. – Ao examinar tais revelações, as autoridades eclesiásticas são muito cautelosas, a fim de não confundir fenômenos meramente psicológicos e parapsicológicos com intervenções do Céu. Sobre muitos casos tidos como genuínas aparições a Igreja tem proferido juízo negativo, desaprovando-os; sobre outros não se tem manifestado por não ver razões favoráveis ou desfavoráveis; em alguns poucos casos tem autorizado e fomentado a devoção ao S. Coração de Jesus ou à Virgem SS., fundamentada nos frutos espirituais e nos sinais decorrentes das alegadas aparições; tal é o que se dá em Paray-Le-Monial, Lourdes e Fátima ...

Têm-se multiplicado as notícias de aparições da Virgem SS. com revelações, mensagens e também com lágrimas, em várias partes do mundo. Algumas estatísticas revelam a freqüência do fenômeno: assim Bernard Billot O.S.B. contou 232 casos entre 1928 e 1975 ocorridos em 32 países, sendo que só na Itália 78 casos. – De 1975 a nossos dias poder-se-iam enumerar muitos outros casos, inclusive no Brasil. Quanto aos casos de lágrimas de Maria SS., contam-se treze entre 1952 e 1972.

Daí a pergunta: que atitude deve tomar um fiel católico diante de tão dilatada onda de extraordinário? É recomendável dizer-lhe Sim? Um Não seria falta de fé? – É o que vamos considerar nas páginas subseqüentes.

1. A ATITUDE OFICIAL DA IGREJA

Antes do mais, convém lembrar que se distinguem revelação pública e revelações particulares. A primeira se destina a toda a Igreja de todos os tempos e lugares e é transmitida pelos Profetas, pelo Senhor Jesus e pelos Apóstolos. Ao contrário, as revelações particulares se destinam a uma pessoa ou um grupo de pessoas para corroborar a fé e suscitar um reafervoramento dos fiéis; são transmitidas por homens e mulheres especialmente agraciados; não se impõem à fé dos católicos, mas podem merecer respeito na medida em que a Igreja permita a sua propagação.

A necessidade de estabelecer critérios para avaliar as revelações particulares impôs-se à Igreja a partir do século XV. O Concílio de Basiléia (1431) viu-se obrigado a abordar o assunto quando tratou da canonização dos Santos.

A Igreja quer ser cautelosa diante dos fenômenos extraordinários, pois estes se apresentam muitas vezes como algo de ambíguo: tanto podem ser sinais oriundos de Deus como podem ser expressões do psiquismo humano sugestionado ou doentio. Por isto a Igreja manda examinar com precisão cada caso. O resultado da pesquisa pode ser triplo:

Declaração de que, no caso, nada de transcendental pôde ser apurado, havendo mesmo indícios de sugestão ou talvez morbidez da parte dos “videntes”. Na hipótese de morbidez e elementos antiéticos (exploração financeira, vaidade, fraude ...), a Igreja desabona a “revelação”. Exemplo de desabono é o Aviso ou Advertência do S. Ofício datada de 29/1/1954, declarando que não consta, em absoluto, terem origem sobrenatural as promessas que o Senhor Deus teria feito a Santa Brígida;

- reticências ou silêncio devido à falta de indícios que levam a abonar ou desabonar a “revelação”; o exame das ocorrências nada conclui em tais casos. Em conseqüência, a Igreja pede que não haja culto público inspirado pelas pretensas aparições;

- permissão para que se divulguem a “revelação” e sua mensagem. Nunca, porém, a Igreja incorpora o conteúdo de tal revelação ao patrimônio da fé transmitido por Jesus Cristo e pelos Apóstolos; aliás, toda autêntica revelação não pode ser mais do que a explicitação do que já está contido no depósito da revelação pública ou nos artigos do Credo oficial. Como dito, a revelação pública ou das verdades de fé se encerrou com a geração apostólica. A fórmula exata da atitude da Igreja diante de uma revelação aceitável é, por exemplo, a resposta da S. Congregação dos Ritos ao arcebispo de Santiago do Chile datada de 6/2/1875; este prelado, tendo pedido o parecer da Santa Sé a respeito de uma aparição ocorrida em seu país, recebeu a seguinte resposta:

“Embora a mencionada aparição não tenha sido aprovada pela Sé Apostólica, todavia não foi reprovada nem condenada pela mesma, mas, sim, permitida como objeto de fé piedosa, ... fé humana¹, depositada em piedosa tradição (como nos referem) e confirmada por testemunhas e documentos válidos” (Decreta authentica Congregationis S. Rituum, t. III. Romae 1900, n.º 3336, p. 48).

A mesma fórmula foi repetida pela Congregação dos Ritos em 12/5/1877, quando três Bispos lhe perguntaram se a Santa Sé havia aprovado as aparições de Lourdes e La Salette (ibidem, nº. 3419, p. 79).

Por sua vez, Pio X, na encíclica Pascendi (1907), querendo promulgar normas em matéria de culto, de relíquias e de tradições piedosas, citou as decisões atrás mencionadas e as comentou brevemente.

Como se vê, na melhor das hipóteses a Igreja declara nada haver contra tal ou tal fenômeno de aparição. É claro, porém, que esta Declaração mesma tem peso e valor, pois supõe um exame doutrinário sério e cauteloso.

A título de complementação, observamos, que, segundo alguns teólogos, a Igreja chegou a dar um laudo de reconhecimento positivo às aparições do Sagrado Coração de Jesus a S. Margarida-Maria Alacoque em Paray-Le-Monial (ano de 1673). Com efeito; alguns documentos oficiais da Igreja aludem a essas aparições – o que parece tributar-lhes reconhecimento público; vejam-se o Breve de Beatificação de S. Margarida-Maria, o Decreto da Congregação dos Ritos datado de 1875, a encíclica Annum Sacrum de Leão XIII sobre a Consagração do gênero humano ao S. Coração de Jesus (15/5/1899) e a encíclica Miserentissimus Redemptor de Pio XI (8/5/1928). Pode-se opinar livremente a respeito do parecer de tais teólogos.

Em certos casos a Igreja pode ir além de uma aprovação negativa. Com outras palavras: além de reconhecer que tal ou tal revelação não fere a fé e a Moral, a Igreja pode permitir que se construa alguma capela ou santuário relacionado com a revelação em foco; pode permitir que se institua uma festa litúrgica ligada aos fatos ... ou que se publiquem livros e estampem imagens ilustrativas; numa palavra: ... pode permitir o culto público decorrente de tal aparição; foi o que se deu, por exemplo, com as aparições de La Salette na França (1846), com as de Beauring (1932) e Banneux (1933) na Bélgica, de Lourdes (1858* e Fátima (1917).

2. A RESERVA DA IGREJA

Importa registrar algumas expressões da atitude reservada da Igreja frente aos fenômenos de aparição.

Aos 4/2/1954, Mons. Alfredo Ottaviani, então Assessor do S. Ofício (do qual foi posteriormente Cardeal Pró-Prefeito), escreveu um artigo no jornal L’Osservatore Romano, no qual ponderava.

“Já há alguns anos, assistimos a um recrudescimento da paixão popular pelo maravilhoso, inclusive em matéria religiosa. Multidões de fiéis se dirigem a lugares de presumidas visões e pretensos prodígios e abandonam, em troca, a Igreja, os sacramentos, a pregação.

Pessoas que ignoram as primeiras palavras do Credo, convertem-se em apóstolos de ardente religiosidade. Atrevem-se a falar do Papa, dos Bispos, do clero em tom de evidente reprovação, e se enfurecem porque os prelados e clérigos não participam das manifestações ardentes de certos movimentos populares.

Não Julguemos que podemos ser religiosos de qualquer modo, é preciso que saibamos ser corretamente religiosos. Podem existir, e existem, desvios do senso religioso como dos demais sentimentos nossos. O senso religioso há de ser orientado pela razão, alimentado pela graça, governado pela Igreja, como toda a nossa vida, e mais severamente ainda. Existe uma instrução, uma educação, uma formação religiosa. Quem combateu, com tanta leviandade, a autoridade da Igreja e o sentimento religioso, encontra-se atualmente diante de explosões impressionantes de sentimento religioso instintivo, sem luz alguma de racionalidade, sem consciência da graça, sem controle, sem governo, isto é tão verídico que terminam em deplorável desobediência à autoridade eclesiástica, que interveio para pôr o devido freio. Assim aconteceu na Itália, em conseqüência das chamadas aparições de Voltago; na França, perante os feitos de Alpis e Bouxières, com ramificações em Ham-sur-Sambre (Bélgica); na Alemanha, com as visões de Heroldsbach; nos Estados Unidos, com as manifestações de Necedah (La Crosse), e poderia continuar citando exemplos em outros países, próximos e distantes”.

Estas observações conservam sua plena atualidade em nossos dias, quando novos e novos exemplos de fenômenos extraordinários se podem apontar.

Para ilustrar a cautela necessária perante apregoadas aparições de Nossa Senhora, segue-se uma lista de 26 dos casos ocorridos entre 1931 e 1950, atentamente estudados pela autoridade da Igreja:

ANO LOCAL VIDENTES RESULTADO
1931 Esquizoga (Espanha) Dois meninos: depois 150 pessoas Decisão negativa
1932 Beauring (Bélgica) Dois rapazes; três meninas Reconhecida pelo Bispo de Namur (Bélgica) em 1943
1933 Banneux (Bélgica) Uma menina de 12 anos; oito aparições Reconhecida pelo Bispo de Liége (Bélgica) em 1949
1945 Codosera (Espanha) Uma menina de 10 anos; depois 100 pessoas Sem decisão
1937 Heede (Alemanha) Quatro meninas de 12 a 14 anos; mais de 100 aparições Sem decisão
1937 Voltago-Belluno (Itália) Uma jovem e algumas meninas; várias aparições Decisão negativa
1944 Bonate (Itália) Uma menina de 7 anos; 12 aparições Decisão negativa
1946 Pfaffenhofen (Alemanha) Uma jovem: três aparições Sem decisão
1947 lle Bouchard (França) Vários meninos Sem decisão
1947 Bouxières (França) Um grupo de meninos Decisão negativa
1947 Tre Fontane (Roma) Um homem de 34 anos; 3 meninos. Várias aparições Sem decisão
1947 Fortsweiller (Alemanha) Uma mulher; oito aparições Sem decisão
1947 Urucaina (Brasil) Um sacerdote Decisão negativa
1948 Assis (Itália) Uma multidão: “a Virgem que se move” Decisão negativa
1948 Gimigliano. Ascoli Piceno (Itália) Uma menina de 13 anos Decisão negativa
1948 Lipa (Filipinas) Uma postulante de 19 anos Decisão negativa
1948 Marta. Viterbo (Itália) Um menino de 10 anos; depois, jovens e adultos; muitas aparições Decisão negativa
1948 Aspang (Áustria) Um homem de 61 anos Sem decisão
1948 Cluj (Romênia) Uma multidão Decisão negativa
1949 Fehrbach (Alemanha) Uma menina de 12 anos Decisão negativa
1949 Lublin (Polônia) Uma multidão: “a Virgem que chora” Decisão negativa
1949 Hasznos (Hungria) Uma multidão Decisão negativa
1949 Heroldsbach (Alemanha) Quatro meninas; depois oito pessoas Decisão negativa
1950 Acquaviva Platani Caltanisetta (Itália) Uma menina de 12 anos; sete aparições Decisão negativa
1950 Athis-Mons (França) Vários adultos Decisão negativa
1950 Necedah (La Crosse, Estados Unidos) Um homem Decisão negativa
A P A R I Ç Õ E S

Como se depreende, em vinte anos houve 26 casos; muito significativo é o grande número dos mesmos ocorridos nos cinco primeiros anos após a segunda guerra mundial (194501950). Em onze desses casos, tratava-se de meninas de 7 a 14 anos; em seis, de meninos e rapazes; duas vezes ocorreu um sacerdote, uma vez uma jovem postulante de Congregação Religiosa; sete vezes, adultos; sete vezes, um grupo numeroso de videntes.

Em dezessete casos, a Igreja formulou uma decisão negativa; em sete casos não chegou a se pronunciar definitivamente (o que parece pouco abonador da autenticidade das aparições respectivas).

Somente em dois casos os Bispos das respectivas dioceses se exprimiram favoravelmente e autorizaram o culto a Nossa Senhora no lugar das aparições, com os títulos de Nossa Senhora de Beauring e de Banneux respectivamente.

Tal listagem comprova a cautela da Igreja, que procura distinguir cuidadosamente fatos de origem transcendental e fenômenos psicológicos meramente humanos.

No artigo seguinte a este, é apresentado um caso de aparição de Nossa Senhora, que, após criterioso exame, mereceu reconhecimento das autoridades eclesiásticas. Trata-se de uma história pouco conhecida, mas muito significativa pelos frutos espirituais que ocasionou.

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¹ Fé humana é o assentimento que se presta a testemunhas humanas dignas de crédito. Fé divina é o Sim dito a Deus que nos fala.

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