Cardeal Geraldo Majella Agnelo

“Bem profetizou Isaias a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Marcos 7,1 ss).

Com frequência escribas e fariseus provocavam disputas com Jesus. Lendo com atenção os evangelhos, nota-se que não era ele a iniciar disputas, mas as tolerava e respondia direta ou indiretamente.

O mestre ensinava verdades novas, às vezes inauditas, longe do modo de pensar comum das gentes, dos chefes; verdades desconcertantes para a vida de todo dia. Jesus não pretendia anular os seus adversários, mas as suas respostas eram um pensamento profundo para fazer progredir a reflexão sobre a condição humana, sobre o mistério de Deus.

Também desta vez, a disputa diz respeito a comportamento de aparência banal: lavar as mãos antes das refeições. Diz o evangelista Marcos: “Os escribas e fariseus tinham visto que alguns dos discípulos de Jesus comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado”. Pode ser a nossos olhos uma coisa simples: boa norma de higiene e boas maneiras, etiqueta social. Mas nos tempos de Jesus, do gesto simples tinham feito um rito religioso com exigência de observância moral.

Muitos comportamentos eram considerados em Israel como puros ou impuros; na base da distinção estavam somente tradições humanas, passadas por gerações, com força de lei, e as transgressões tinham peso de pecado. De fato, nas leis provenientes de Moisés, confluíram não somente coisas importantes, por exemplo, os Dez Mandamentos, mas ainda simples normas higiênicas, tradições meramente humanas. Assim para escribas e fariseus o não lavar as mãos antes de comer era falta gravíssima, intolerável, que tornava o homem impuro.

À base desses comportamentos, existiam explicações estranhas: o temor e pânico da gente primitiva face às forças da natureza, a persuasão de que no mundo escondiam-se potências tenebrosas e hostis, que era necessário neutralizar com ritos e magias. Assim existiam objetos impuros a evitar, plantas impuras, animais impuros; ai de quem as tocasse, ai de quem delas se servisse para nutrir-se.

Surgia uma religiosidade falsa, feita de observações minuciosas, uma vida conduzida de cabeça para baixa, sempre no temor de enganar-se, com medo de cair na hostilidade de forças misteriosas.

Tudo isso estava longe do clima sereno e confiante da Aliança. No livro do Deuteronômio 4, 1 e ss, “Moisés falou ao povo: ouvi as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir. ... Nada acrescenteis, nada tireis à palavra que vos digo”. À base da Aliança estava a amizade com o Senhor, a alegria de sentir-se por ele amado, de ter dele a confiança de uma missão a realizar na história, compreendida a promessa de um Messias redentor. Jesus via na polêmica com escribas e fariseus a diferença entre o projeto de Deus e o modo como a gente acabava por viver. Por isso disse o Senhor: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”. Os lábios são símbolo do exterior, das palavras ocas e medrosas.

O coração por sua vez: uma realidade complexa. É pequenino, mas carregado de significados espirituais, afetivos. Sentimos o coração como sede do eu profundo, da identidade da pessoa, onde alguém se mede com os outros, com Deus, em relação de amor, ou de recusa do amor. Onde amadurecem as escolhas importantes sobre a vida, onde são tomadas as decisões fundamentais para o nosso destino.

Jesus contrapõe os lábios e o coração, isto é, a exterioridade do lavar as mãos e os pratos e copos, porque se temem conseqüências negativas, mágicas, pavorosas, e a interioridade das pessoas que na luz de Deus se amam, se respeitam e se ajudam, se empenham pela vida e pela morte. Já o profeta Samuel advertia: “O homem olha a aparência, o Senhor olha o coração”(1 Samuel 16,7).

Mas o coração do homem é cheio de ambigüidade, capaz de generosidade sem limites, mas também de baixeza e vileza. Victor Hugo escreveu: “De todas as coisas que Deus fez, o coração humano é a que traz mais luz e também mais trevas”.

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