Por Humanista RJ,
Há alguns anos tive que procurar por ajuda psicológica e, no lugar onde fui procurar essa ajuda, havia um homem que, segundo me informaram, havia parado mentalmente nos anos setenta após ter sofrido um acidente automobilístico.
Não procurei saber se a informação era ou não verdadeira, mas imaginem alguém nos anos 2000, devido à enfermidade, teimando em não sair dos anos setenta! Certamente, para não sofrer tanto, algum mecanismo de fechamento nele mesmo o homem deve ter desenvolvido – já que o mundo a sua volta não parou de avançar, e velozmente, por sinal…
Parto então daqui para falar um pouco sobre o contexto do Concílio Vaticano II…
A modernidade inevitavelmente emergiu e, a partir do século XVI, foi se impondo e se solidificando, forjando um ser humano cada vez mais autônomo e senhor de si; nesse contexto o poder político da Igreja na Europa vai entrando em declínio crescente, e o saber científico passa, de modo também crescente, a ser a nova luz a guiar esse ser humano senhor de si – pois é ele próprio o criador dessa nova luz-guia.
O século XVIII marca a irrupção do homem contemporâneo, e “o mundo na contemporaneidade passa a ser reconhecido com consistência em si mesmo, autônomo em face da autoridade eclesiástica e em face da missão da Igreja.”
Frente a esse estado de coisas, a Igreja vai entrando e permanecendo, da modernidade à contemporaneidade, em um estado de isolamento, devido a uma postura de constante embate com o mundo e suas atualidades, fechada ao diálogo e aos sinais dos tempos.
Desde a reforma protestante, no século XVI – onde a Igreja, em vez de fazer a sua reforma, preferiu fazer uma contrarreforma, a Igreja católica assume uma forte atitude eclesiocêntrica de fechamento nela mesma que perdurou por quase quintetos anos.
Daí eu começar este texto com o exemplo do homem que, nos anos 2000, permanecia estacionado e fechado mentalmente nos anos 70 – isso com o mundo a sua volta modificando-se irremediavelmente.
Assim ficou a Igreja, nostálgica, amante e desejosa de uma época irretornável, fechada por tanto tempo no passado.
 Todavia, embora com quase cinco séculos de atraso, a reforma da Igreja enfim aconteceu, com o “novo pentecostes” que foi o Concílio Vaticano II.
O Concílio Vaticano II é um novo caminho de diálogo com o mundo, este não lhe é mais hostil e ameaçador, mas parte integrante de seu devir – mais ainda, agora a Igreja entende-se sendo no mundo como parte dele – não mais uma instituição de gueto, não mais uma instituição que se entende de modo esquizofrênico, isto é, mesmo no mundo entendendo-se e autoafirmando-se fora dele.
A ruptura trazida pelo concílio com o modelo estacionado e obsoleto de Igreja, aquela Igreja de molde imperial, clericalista e autorreferenciada, deu-se a partir de um movimento de retorno às fontes bíblicas e patrísticas, estabelecendo continuidade com a Tradição da Igreja e descontinuidade com o modelo eclesial tridentino.
Hoje, com efeito, vê-se que a Igreja vive uma forte tensão entre os que desejam o retorno aos fundamentos, aos tempos da Igreja da cristandade ou neocristandade e os que, acolhendo o espírito reformador do Concílio Vaticano II, desejam ardentemente uma Igreja atenta aos sinais dos tempos e amiga da modernidade, entendendo que só assim, dentro dessa modernidade, a Igreja como um todo pode cumprir o seu papel de ser sal, luz e bom fermento na massa.
Recepcionar o Espírito do Concílio Vaticano II é romper não só com os vínculos internos que prendem a Igreja aos grilhões de uma passado que não volta, mas romper também com as estruturas injustas a ela externas com as quais a própria Igreja aliou-se no decorrer da história – é romper com entendimentos e atitudes esclerosadas que mais afastou as pessoas do Evangelho do que as aproximou.
A Igreja da América Latina recepcionou este espírito conciliar de ruptura, que fez emergir uma Igreja atenta à exploração e opressão dos grandes sobre os pequenos, colocando-se ao lado dos explorados e marginalizados pelos sistemas opressores em vigência nos países pobres do continente.
É evidente que essa recepção não foi repentina, mas construiu-se paulatinamente e continua construindo-se, muito embora tenha sofrido baques profundos, e para muitos até pareceu que não avançaria mais.
A mentalidade elitista, tradicionalista, clericalista e de um carismatismo cada vez mais intimista e emocionalista, apartado (para não dizer opositor) de uma Igreja engajada nas lutas sociais como foi Jesus engajado nas lutas sociais de seu tempo, permanece nos corações e mentes dos cristãos inclusive não elitistas – pobres mesmo, e que certamente compõem uma parte expressiva, até mesmo hegemônica, de nossa Igreja. Isto tudo tornou-se uma realidade cultural, estrutural, e ao meu ver os pontificados de João Paulo II e Bento XVI foram momentos estanques do movimento reformador do Concílio.
Entretanto, Francisco foi suscitado por Deus a ser o Bispo de Roma e com ele o movimento reformador iniciado por João XXIII, o “Papa Bom”, e continuado por Paulo VI, é retomado.
Jorge Mario Bergolio escolheu o nome de um reconstrutor para seu papado, pois são Francisco de Assis recebeu a instrução divina de reconstruir a Igreja – tarefa que agora é encabeçada por Bergolio, o papa Francisco, saído da América Latina, de um continente de muita pobreza que convive com muita riqueza concentrada em mãos de minorias cada vez menores – talvez por isso Francisco tenha tanta sensibilidade para com os pobres, excluídos e desvalidos do mundo.
Sim, o Espírito do Concílio foi e continua sendo realmente um “novo pentecostes” para Igreja, um “Kairós”, porque sua origem está em Deus mesmo, na fé que gerou a Igreja e a sustenta – e “se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus” – At 5,38-39.
Graça e Paz.
Fontes consultadas:
BRIGHENTI, Agenor. Em que o vaticano II mudou a igreja. 1. ed. São Paulo: Paululias, 2016.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1975.

Postar um comentário

Tecnologia do Blogger.