É muito perigoso em Bíblia o precipitar das conclusões sem um exame da maneira de se expressar, com coerência e de acordo com a mentalidade já manifestada anteriormente. Não é possível uma palavra ter sido usada em sentidos diferentes num mesmo contexto, a não ser que ela tenha mesmo essa propriedade de dualidade de significações. Observa-se a existência de um novo consórcio de tarefas ou co-munus, agora entre o homem e a mulher, quando Deus diz:

“Iahweh Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe seja igual” (Gn 2,18).

Salta aos olhos a necessidade de muito cuidado no exame desse trecho, eis que, naquele Jardim, em vida familiar e íntima com Deus, é um absurdo sentir solidão. Quando se está em íntima comunhão com Deus não se pode estar “só”, “solitário”. Por isso, aqui é o mesmo diapasão da afirmativa já analisada anteriormente de que “Deus viu que era bom” (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31), ocorrida durante a narrativa inicial, coordenando-a como um refrão. Vimos então que o sentido era de que aquilo que se criava era bom para o Homem, na finalidade que lhe foi dada e impressa por Deus na Criação. Assim o Homem sozinho, sem uma auxiliar que lhe fosse igual, não atingiria nunca aquele ideal que lhe fora designado por Deus. No Jardim recém-plantado tudo se desenvolveria no seu sentido natural, qual seja, viveria a família humana advinda do casal em comunhão plena com Deus, na glória e felicidade eternas, coordenada e conjuntamente com toda a Criação:

“O homem deu nomes a todos os animais,... mas... não encontrou a auxiliar que lhe fosse igual. Então Iahweh Deus..., da costela que retirara do homem... modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: ‘Esta sim, é osso de meus os-sos e carne de minha carne...’ Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne. Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mu-lher, e não se envergonhavam” (Gn 2,20-25).

Novamente se torna imperioso o uso do bom-senso para se compreender essa “procura de uma ‘que lhe fosse igual’ entre os animais” que foram entregues a Adão. Não se pode pretender que se tratasse apenas de “uma esposa”, uma fêmea, para a mãe de seus filhos! Não! A atividade programada por Deus ao Homem não se limitava a isso. A ele cabia “dominar e cultivar a terra e possuí-la, e submetê-la, dominar sobre os animais de toda a espécie” (Gn 1,28; 2,5). Era-lhe indispensável uma “auxiliar” à altura, com as mesmas aptidões naturais para complementar sua atividade. Foi um ser assim que Adão “não encontrou” entre os animais, e Deus lhe preparou a Mulher, “que lhe era igual”, pois “não lhe era bom ficar só” para se conseguir o objetivo traçado por Deus.

Com a Queda Original, rompida a comunhão com Deus, dissolve-se a unidade gravitacional de todo o sistema, manifestam-se várias desordens. Começam a se exprimir no relacionamento do casal com o próprio Deus e entre si mesmo, em atitudes agressivas mútuas e com a própria unidade total, que perdendo a convergência dinâmica e harmônica em direção ao Criador por mediação humana, torna-se divergente, sem sentido e completamente difusa, passa a reinar a confusão total. O Homem e a Mulher não sabem mais o que fazer, se escondem, um do outro e do próprio Deus:

“Eles ouviram os passos de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e a mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse Ele. ‘Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’. Ele reto-mou: ‘E quem te revelou que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!’ O homem respondeu: ‘A mulher que puseste junto de mim me deu da árvo-re, e eu comi!’ Iahweh Deus disse à mulher: ‘Que fizeste?’ E a mulher respondeu: ‘A serpente me seduziu e eu comi” (Gn 3,8-13).

Instala-se a insegurança e a desarmonia. Primeiro, o medo, levando-os a se esconderem, em virtude da nudez que passaram a sentir, denotando a insegurança da perda da comunhão com Deus e o profundo sentimento de culpa advindos. A seguir, inquiridos, o Homem acusa a Deus e a Mulher: “A mulher que puseste...”, isto é “a culpa é tua e da mulher”: “tua por tê-la posto junto de mim e dela por me ter seduzido”; por sua vez, a mulher acusa exclusivamente a serpente. A esta nem é dada a oportunidade de defesa, não é interrogada nem dá explicações e desaparece do cenário terrivelmente amaldiçoada, denotando-se assim uma situação de inimizade já existente e devendo ainda perdurar e prosseguir. A luta com ela apenas começava e as maldições que lhe foram dirigidas se assemelham às condições de tratamento dado ao inimigo quando derrotado [cfr. Sl 72(71),9; Mq 7,17; Is 25,12], como se viu.

O consórcio Homem-Mulher continua vigorando mesmo após a expulsão do Paraíso, eis que os Planos de Deus são irreversíveis e um ato humano, mesmo o pecado, não os pode comprometer. Porém, agora, passaram à condição de mortais, seja pelo fato de que “és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19), seja pela presença das “dores de parto” (Gn 3,16), seja “no império da força a vigorar entre marido e mulher” (Gn 3,16b), seja pelo “sofrimento advindo do trabalho humano” (Gn 3,17-19b), todos estes fatos e muitos outros advindos como conseqüências imediatas do Pecado Original. Na verdade toda a Criação perde o seu eixo central ou gravitacional e perde o equilíbrio natural (Gn 3,17a), desnorteando-se completamente, caindo, tal como no-lo diz São Paulo, numa espécie de gestação, até que se “cumpra” a salvação advinda com a Encarnação do Verbo:

“...a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a cri-ação foi submetida à vaidade - não por seu querer, mas por vontade daquele que a sub-meteu - na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para en-trar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rm 8,19-22).

Outras conseqüências passam a se manifestar, principalmente no predomínio do instinto carnal, próprio do animal que é o Homem, desaparecida a vida sobrenatural a que fora elevado e não o quisera: são as conseqüências mediatas do pecado.

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