Luciane
Os dois dialogantes cuja conversa escutámos no outro dia, voltaram a se encontrar.
Rui: Os argumentos que usaste para me mostrar a razoabilidade da existência do Ser Necessário, são interessantes! Porém, se eu quiser saber mais sobre esse Ser, sobre os Seus atributos, parece que não terei outra opção senão a de me virar para a Revelação. Que te parece??
Carlos: Creio que talvez possas saber mais coisas acerca do Ser Necessário, sem a Revelação...
Rui: Como? Por suposição??
Carlos: Não! Através do modo como pudemos chegar à conclusão da existência do Ser Necessário, ou seja, através dos entes, do Universo.
Rui: Mas tu sabes, tal como eu, aquela máxima de S. Tomás que diz que “nada existe na inteligência que não tenha passado pelos sentidos”. Vês como tenho andado a estudar só para te confundir??
Carlos: Mas o autor dessa frase tem razão. Se nada conheceres pelos sentidos, nada poderás conhecer de facto.
Rui: Pois. O problema é que, segundo me parece, Deus não entra pelos meus sentidos. Não o vejo, não o cheiro, não lhe sinto o tacto, não o ouço...
Carlos: É verdade. Nem tal poderia ser. Se assim fosse, não seria Deus, pois como fenómeno comensurável, poderia não ser, seria contingênte.
Rui: Então, o que dizer  sobre Deus, e com que fundamento??
Carlos: Já te disse: pelo raciocinio indutivo, que é abstrativo.

Como pudemos ver no outro dia, a Deus só se chega pela via indutiva, aquele modo de reflexão que parte do particular, contingênte, e vai à procura do Fundamento Primeiro, do seu principio de razão suficiênte. E tal modo impõe-se, pois, vimos, o Ser Necessário se impõe, sendo que não é o Universo nem nada que lhe pertença.
Ora, o ser contingênte das coisas, do Universo, é a rampa de lançamento indutiva para se afirmar a existência de Deus. Porém, a partir de Kant, as coisas se turvaram um pouco. Dizia este filósofo alemão que, sobre o ser das coisas, nada podemos saber, mas apenas conhecer o fenómeno. O que é o fenómeno?? É a manifestação das coisas aos sentidos; dito em modo filosófico, os seus acidentes. Mas, sobre a essência, nada podemos dizer, pois o que nos é manifesto são as sensações, a manifestabilidade das coisas aos sentidos. Ora, assim, segundo Kant, nada podemos dizer sobre o ser. Vale a pena observar, para quem não conheça Kant, que este filósofo já se movia num ambiente cientifista, para a qual o conhecimento objetivo se prendia com os fenómenos, com o mensurável, com os dados empiricos. Nota-se aqui já um afastamento da metafísica.
Mas Kant, que parece não ter lido os clássicos gregos, esqueceu um aspecto fundamental: para que haja fenómeno, é preciso que haja o ser, o númeno. Ora, Kant não reparou que o ser lhe é dado, ainda que indiretamente, lateralmente, é certo, mas lhe é dado com o fenómeno. Não há fenómeno sem ser.
Reparem nesta última afirmação que acabámos de ver. Trata-se de uma afirmação, um juizo, ato da inteligência. Mas, como vimos no diálogo acima exposto, nada há na inteligência que não tenha passado pelos sentidos. E, por outro lado, pelos sentidos passam apenas os fenómenos!! Como é que nós, naturalmente, afirmamos o ser?? Por abstração!
De facto, o nosso conhecimento é sensível, mas também inteligível. Nós inteligimos os objetos (ob-jectum, posto diante) que nos rodeiam.  Nós os lemos e relacionamos (inter ligere). Ora, nós nos debruçamos SOBRE os objetos, interpretamos. Isto é abstração.
Eu quis insistir neste ponto, porque o ambiente cientifico do senso comum em que nos movemos tende a conotar negativamente a palavra “abstração”, sendo certo que fazer abstração é não só natural ao ser inteligente, mas necessário para a vida humana. Nós, pessoas, não trabalhamos na base no sensivel. Partimos dele, absolutamente, mas abstraimos dele, formamos juizos, escolhemos, prevemos, duvidamos, interrogamos. Ora, tudo isto, próprio do ser  humano, é abstração. E é abstração, como ato da inteligência, que parte dos dados empiricos, sensiveis.
Tal como, por abstração, e por via indutiva, vimos a necessidade do Ser Necessário,  é também nesta via, aliás a única (Deus não é objeto), que poderemos, pela via da razão, falar algo mais sobre Deus.

Esse ipsum subsistens
Deus é o Ser. O Ser é a essência mesma de Deus. Ele é o Ser subsistente por Si mesmo e em Si mesmo. Vimos isto mesmo no outro texto. Tudo o que existe, os entes, o Universo, é, existe, mas por participação, porque são contingêntes, e o contingênte é causado: não existe por si, nem em si. Só Deus É,  e É aquilo que É: Ser quem é – Ser subsistente por Si mesmo, e em Si mesmo. Os entes não são: O Ser é que lhes dá a determinação-que-são, lhes comunica, participa o ser, o existir.
E, nesta abordagem filosófica, já vamos ao encontro da Escritura: “Moisés disse a Deus: «Quando eu for aos israelitas e disser: “O Deus de vossos pais me enviou a vós”; e me perguntarem: “Qual é o seu nome?”, que direi?» Disse Deus a Moisés: “Eu sou aquele que é”. Disse mais: “Assim dirás aos israelitas: «EU SOU me enviou até vós»” (Ex 3,13-14).
É escusado, como fizeram não poucos, querer ler este texto procurando nele principios metafísicos. O povo judeu não dispunha dessas categorias que só surgirão na filosofia grega, justamente como reação à escola eleata (sobre um deles, Parménides, já falámos anteriormente). Neste texto, o que devemos procurar ver, é a afirmação da absoluta transcendência de Deus, a tal ponto de se constituir como a negação da atribuição de qualquer nome. Deus é inominável.
Ser não é, pois, um atributo de Deus, mas sim a sua essência, a sua substância, natureza. Há que se ter muita atenção quando se fala nos atributos de Deus. Estes atributos não estão ao lado, acima ou abaixo do seu Ser, mas são as multiformes e infinitas manifestações e modalidades da Sua única essência, o Ser. Como se dissessemos, por exemplo, que “Deus é Ser e é infinito, ou que Deus é Ser e é amor”, etc! Nada disso. O Ser é infinito, o Ser é amor, o Ser é bondade, etc.
Nem se pode conceber estes atributos como conceitos estaques e isolados entre si, como quem dissesse, “Deus é amor, mas também onipotência, e é infinito”. Também não! Deve ser, antes, o amor é a sua onipotência, ou a onipotência é amor, ou também o infinito é amor, etc.
Trata-se, portanto, de diferentes manifestações do Ser mesmo de Deus, manifestações essas, ou modos do ser de Deus que, de modo eterno, nele existem em grau máximo. Eles (os atributos) não vão sendo; eles são, e são-no em grau infinito.

Conhecer os atributos de Deus – o ser participado
Para além do Ser de Deus, entendido em modo intensivo, eterno, infinito, incausado, Uno (como já havia inteligido Melisso, na linha de Perménides – o ser só pode ser uno), poderemos dizer mais sobre Deus, passar da sua essência aos seus atributos, para além do atributo da imaterialidade e extratemporalidade, que se impõe como necessária?
Eu insisti convosco, na última conversa, para reterdes uma expressão: “participação”. Lembram-se? Todo o ser contingênte é participado, ou seja, recebe do Ser Necessário, do esse ipsum subsistens  o seu próprio ser contingênte e as suas perfeições. De facto, só pelo ser das coisas é que se pode afirmar a necessidade do Ser Necessário.
Mas nós inteligimos nos entes outras perfeições que não apenas o seu ser ente, o seu existir. As perfeições que encontramos nos entes, são também elas participadas, juntamente com o seu acto de serem entes, por participação do ser, participação essa dada pelo Ser Necessário.
Na verdade, vale afirmar agora uma máxima: o efeito comunica algo de si à causa; o Criador comunica algo de si ao criado. Escutemos, para concluir este texto, os nossos dialogantes.
Rui: Mas eu posso criar uma cadeira, sem lhe dar nada de mim mesmo.
Carlos: Eu creio que tu não és criador de coisa alguma, mas apenas artifice.
Rui: Que o seja. Mesmo assim, nada participo de mim à cadeira.
Carlos: Será?? Participarás, aliás, o mais importânte: a ideia da cadeira, e todas suas qualidades, perfeições que, antes de serem da cadeira em si, eram perfeições em ti, na tua ideia. Fizeste aquela cadeira porque a amaste, a viste como um bem, antes dela o ser. E mesmo depois de feita, ela vai continar a ser o bem que era antes de ser.
Rui: Mas isso é um amor utilitarista... segundo dizes, Deus não precisa de nada!
Carlos: É. O amor em Deus, se existir, é infinitamente gratuito, mas isso é tema de outra conversa... agora convido-te a reter na tua mente que:
“o efeito comunica algo de si à causa – o Necessário comunica algo de Si ao contingênte”.
Por Rui Silva
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