Dois renomados estudiosos dão seu parecer sobre o paulatino processo de barbarização a que a cultura brasileira tem se submetido. Vale a pena divulgar!
Rodolfo Acatauassú Nunes – Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre e Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Livre-Docente pela Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Paulo Silveira Martins Leão Júnior – Advogado; Procurador do Estado do Rio de Janeiro; Membro fundador do Centro de Bioética da Amazônia, em Belém, Pará, Presidente da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro.
Nos últimos anos vem se acumulando exponencialmente na área médica o conhecimento científico e tecnológico. Muitas afecções tidas antes como incuráveis passaram a responder a novos tratamentos. A cada dia a Medicina se aprimora contornando situações progressivamente mais complexas, algumas vezes de modo até mesmo imprevisível. Contrariamente ao que ocorre com as células tronco embrionárias, o sucesso das células tronco adultas, retiradas do próprio indivíduo, da placenta ou cordão umbilical, vem revolucionando condutas previamente limitadas, amenizando ou corrigindo disfunções tidas como terminais.
O espírito científico de avançar em direção à obtenção da cura de uma doença congênita ou adquirida, foi sempre o que norteou a Medicina. Quando não é possível curar, o objetivo é usar a ciência e a arte médica em toda a sua capacidade para realizar uma terapêutica paliativa da melhor qualidade possível. Isto se nota com nitidez em situações clínicas terminais em que novas técnicas e cuidados multi e interdisciplinares têm conseguido expressivo alívio do sofrimento, sem cair no exagero do intensivismo.
Quando mãe e feto são os pacientes, os cuidados médicos são sempre dirigidos para ambos, visando a preservação de suas vidas. Em situações de iminente risco para a vida fetal ou materna o parto pode ser antecipado, para proporcionar, em ambiente extra-uterino, com os numerosos recursos de terapia intensiva atualmente disponíveis, o melhor tratamento possível para ambos. Em outros casos, tem sido possível realizar intervenções bem sucedidas intra-útero, para corrigir uma afecção congênita ameaçadora da vida ou da qualidade da vida. Um exemplo é a correção intra-uterina da meningomielocele onde, por uma falha de fechamento da parte posterior do tubo neural, parte da medula se exterioriza através de um defeito ósseo da parte distal da coluna. Com este procedimento vem se observando melhora das seqüelas motoras e da hidrocefalia, quase sempre presentes quando a correção é deixada para após o nascimento. Tudo isto era uma impossibilidade até há relativamente pouco tempo.
Infelizmente, existem também afecções congênitas letais, sobrevindo a morte antes ou pouco após o nascimento. Nestas doenças, cujo diagnóstico vem progressivamente se tornando de modo geral mais seguro, deverão ser ofertados cuidados médicos paliativos de alta qualidade, iniciados a partir da detecção dando um especial suporte aos pais, principalmente à mãe. Em uma dolorosa situação que envolverá a perda precoce de uma criança sonhada deve ser explicado, com sensibilidade, que seu filho sofre de uma afecção incurável e letal no estágio atual do conhecimento e, embora não se possa precisar o momento de sua morte, tudo será feito para ofertar o melhor tratamento possível, devido à dignidade humana. Deve ser assegurado aos pais de que eles não estarão sozinhos e que os cuidados da equipe serão também estendidos ao domicílio nos poucos casos em que possa ser dada a alta hospitalar. Entre essas afecções letais é listada a anencefalia.
A anencefalia é proveniente de um defeito de fechamento da parte anterior do tubo neural, que ocorre entre a terceira e quarta semanas de gravidez. As suas principais características são a falta de desenvolvimento da calota craniana, couro cabeludo e, principalmente, o comprometimento da parte anterior do encéfalo que origina os hemisférios cerebrais. As porções média e posterior do encéfalo podem ter grau variado de desenvolvimento, chegando a permitir que essas crianças respirem espontaneamente, chorem, deglutam, façam expressões faciais, movimentem os membros e respondam a estímulos nocivos. Mesmo sem embasamento, alguns tentam definir a criança com anencefalia como em morte encefálica, mas o simples fato dela respirar espontaneamente, comprova a presença de um tronco encefálico funcionante e descarta completamente esta possibilidade.
Embora a maioria dessas crianças venha a falecer horas ou alguns dias após o parto, uma pequena parcela recebe alta hospitalar para o convívio com a família, que pode durar alguns meses. No normalmente curto período de sua vida, essas crianças podem receber o amor e carinho de seus pais, avós e irmãos, serem registradas civilmente e, uma vez falecidas, sepultadas dignamente. Todos esses previsíveis eventos devem ser alvo de preparo específico, estando incluídos no rol dos cuidados paliativos, comuns a todas as afecções letais. De nosso conhecimento, o máximo registrado na literatura em termos de sobrevida na anencefalia foi de um ano e dois meses, embora um autor argentino refira genericamente que algumas dessas crianças poderiam atingir vários anos. De qualquer forma, não é verdadeira a afirmação, utilizada habitualmente como tentativa de descaracterizar o enquadramento como aborto, de que a vida extra-uterina na anencefalia é absolutamente inviável e de que todas essas crianças morram logo após o parto.
Um outro aspecto a ser aprofundado é a possibilidade dessas crianças, por um mecanismo de neuroplasticidade, experimentarem sensações ou uma forma de consciência primitiva. Foi justamente esta possibilidade que levou ao Conselho de Ética da Associação Médica Americana, em 1995, a retroceder quanto à retirada de órgãos de crianças com Anencefalia, exigindo a verificação da morte encefálica aplicáveis às pessoas em geral. O referido Conselho exortou a comunidade científica a realizar mais estudos que possibilitassem melhor atenção e cuidados à criança com anencefalia e seus familiares, postura que permanece até hoje. No mesmo sentido posicionou-se o Comitê Nacional de Bioética da Itália, afirmando que : “O anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade”. Esta preocupação foi também recentemente enfatizada por ocasião da publicação na literatura médica internacional, em 2004, do primeiro caso de Ressonância Nuclear Magnética em recém nascido com anencefalia.
Talvez, através de estudos neurofisiológicos mais aprofundados, com tecnologia atual, seja possível explicar alguns relatos de mães que descrevem um certo grau de interação com seus filhos portadores de anencefalia, e que vêm classicamente sendo atribuídos a meros reflexos. Alguns desses relatos podem mesmo surpreender, como o de uma mãe que referiu que durante a gravidez o bebê respondia a uma compressão manual uterina feita por ela movimentando-se sistematicamente do mesmo lado, mas não respondia quando a compressão era feita pelo pai. Em outro relato, foi observado pela mesma mãe, após o nascimento, a normalização de parâmetros vitais monitorizados de sua filha na incubadora, quando ela dirigia-se a ela acariciando-a, mas não quando isso era feito por outras pessoas.
Desta forma, para a anencefalia e outras doenças congênitas letais, cumpre ofertar o que a Medicina e as áreas afins têm de melhor para o alívio de uma situação de sofrimento para os pais e para o paciente. A proposição defendida por alguns setores de realizar a chamada “antecipação terapêutica do parto” logo após o momento diagnóstico, invariavelmente condiciona 100% de mortalidade imediata para o elemento mais frágil do binômio materno fetal, e não pode ser aceita como terapêutica, já que o resultado do “tratamento” é pior do que a evolução natural da própria doença, a qual, em que pese a sua elevada letalidade, ainda pode permitir o nascimento e uma eventual sobrevida de alguns meses. Paradoxalmente, ao invés de privilegiar com cuidados médicos um membro do binômio que está em risco iminente de vida, condição que legitimaria a antecipação, faz justamente o oposto, pois coloca o feto que encontrava-se em condição de relativa estabilidade no útero materno em uma situação de morte inevitável. Por outro lado, as razões maternas evocadas para a indicação da antecipação, como, por exemplo, o polidrâmnio, a hipertensão arterial, o posicionamento atípico e a instabilidade emocional, podem ocorrer também em outras gravidezes, sendo habitualmente contornadas sem a necessidade de uma sistemática antecipação. Na prática, o termo acaba correspondendo a um eufemismo para o aborto, sendo algumas vezes a morte fetal provocada, ainda no ambiente intra-uterino, de modo que a movimentação fetal ou um eventual choro, não venha a angustiar a mãe ou outros familiares.
Além disso, eliminar intencionalmente o feto, porque uma dada afecção implica inexoravelmente em brevidade de vida extra-uterina, não se coaduna com os princípios mais elementares da Medicina entrando no escopo do chamado aborto eugênico, que não encontra respaldo legal em nosso meio. Obviamente, tomando como base este tipo de argumento a anencefalia seria apenas uma entre outras anomalias listadas como letais, como é o caso da trissomia do cromossomo 13, cujo tempo médio de sobrevida tem sido descrito como de apenas 2,5 dias.
A conduta de eliminação de filhos portadores de afecções letais, também não é isenta de riscos para os pais, que além da possibilidade do risco físico materno relacionado a uma intervenção extemporânea, podem sofrer pelo remorso de terem dado a autorização para o procedimento que acarretou a morte, sem o alento proporcionado pelo tratamento paliativo bem conduzido, o qual, independentemente da gravidade da situação clínica, expressa o cuidado e respeito à dignidade que todo filho merece enquanto vive. Como a raiz do sofrimento dos pais está no comunicado diagnóstico da afecção letal, a ordem para a antecipação da morte, não traz a resolução do quadro psicológico em si, mas pode transferir o ônus de uma morte devida a uma condição alheia à vontade do casal, para o âmbito da consciência do próprio casal. Isso sem mencionar o desacerto que traria um eventual erro diagnóstico que, embora raro na anencefalia, é ocasionalmente descrito na literatura.
No caso específico da anencefalia é mais sensato respeitar sempre a vida humana, mesmo em situação de grande fragilidade, quer acreditando na diminuição da ocorrência da afecção com o uso do ácido fólico e outros elementos que vierem a ser comprovados como eficazes, quer acreditando no aprofundamento do conhecimento científico a ponto de permitir o desenvolvimento de um diagnóstico bem precoce e, como decorrência, uma manobra terapêutica intra-uterina. Deve ser lembrado que muitos estudos recentes, inclusive experimentais, vêm colocando a possibilidade de, pelo menos algumas formas de anencefalia, terem origem na exencefalia, ou seja, o evento primário ser a falta de cobertura do sistema nervoso central, expondo o encéfalo desprotegido à injúria pela ação do líquido amniótico e pressão intra-uterina. Por mais que nos dias de hoje pareça irreal a possibilidade terapêutica, convém aprender com a história da Medicina e não repetir, por semelhança, a frase dita por um célebre cirurgião, de que o médico que tentasse suturar uma ferida cardíaca perderia o respeito de seus colegas. Cerca de treze anos depois, outro cirurgião fazia a primeira sutura cardíaca, em um jovem com ferida precordial por arma branca, salvando o paciente. O que antes pareceu ficção àquele cirurgião experimentado levando-o a emitir uma sentença que julgava de bom senso para o conhecimento da época, foi desmentido pela realidade em pouco tempo. O mesmo pode acontecer com a anencefalia e outros casos de afecções congênitas consideradas hoje letais .
Por outro lado, a ação benéfica do ácido fólico na prevenção dos defeitos dos tubos neurais e, em particular da anencefalia tem sido referido na literatura internacional em percentuais elevados, em torno de 50% ou mais. Esta substância deve ser ministrada cerca de três meses antes da gravidez e no curso desta. A adição do ácido fólico às farinhas de trigo e milho, como preconizado pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, é medida salutar e que deve ser apoiada, mas sempre complementada por outras ações. O ácido fólico é medicamento de baixo custo, que também tem efeitos positivos para a saúde em geral do feto e de sua mãe, cuja distribuição corriqueira deveria integrar as ações do SUS – Sistema Único de Saúde, pois atualmente a anencefalia afeta principalmente as mulheres carentes, que não dispondo de acompanhamento especializado no pré-natal, não têm informação sobre essa eficaz possibilidade de prevenção da doença. Por sua vez, as mulheres que tenham tido filhos ou filhas com anencefalia e/ou outros defeitos de fechamento do tubo neural, têm chances aumentadas de terem a recorrência desses mesmos defeitos em gravidez subseqüente, sendo-lhes recomendada a ingestão de ácido fólico em doses maiores. A prevenção e o adequado acompanhamento pré-natal, portanto, são as medidas mais eficazes para esses casos, respeitando-se assim não só a garantia da inviolabilidade do direito à vida, o primeiro dos direitos fundamentais, como a diretriz constitucional que estabelece “prioridade para as atividades preventivas”, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Prevenir, buscar a cura da doença e amparar os que sofrem são atitudes concretas e eficazes na busca de superar o sofrimento.
Finalmente, a legislação brasileira tem também importante papel em estimular o avanço de novas soluções na Medicina. No caso da meningomielocele isso fica bastante claro, conforme publicação recente no meio científico a respeito do potencial de seu reparo intra-útero. É dito textualmente: “ A legislação brasileira não prevê a interrupção médica da gravidez, quando complicada por fetos com esta malformação, o que reforça a necessidade de conhecermos a fundo a sua evolução e as possíveis inovações terapêuticas para esses casos”. Ora, em muitos países o aborto é legalmente permitido em feto portador de meningomielocele. Como identificaremos a atitude compatível com a verdadeira Medicina, ante posições absolutamente antagônicas para uma mesma situação clínica do feto? Será aquela exercida pelo médico que entra no Centro Cirúrgico para interromper precocemente a gravidez e provocar a morte fetal, ou aquela exercida por outro médico que entra em uma outra sala para, sem interromper a gravidez, operar o feto no sentido de obter a sua cura? Não é possível que as duas sejam verdadeiras. Uma será verdadeira e a outra, conseqüentemente, falsa. A repulsa natural embutida no ato de matar um paciente facilita bastante a resposta.
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