Desde os primórdios a existência humana é marcada pelo sofrimento, pela dor e pelo desejo de sempre se superar e ser mais. A busca de transcendência do homem é alimentada pelo discurso das religiões. Porém, percebemos um contraste entre o anúncio das religiões e a experiência histórica do ser humano: as religiões anunciam um Deus fiel e que não abandona o ser humano e que sempre é providente; mas a experiência histórica demonstra que, apesar de todo o esforço das religiões em defender a Deus, Deus abandonou o ser humano. Fome, peste e guerras sucessivas têm mostrado o quanto a vida humana é frágil, o quanto parece que Deus criou o mundo e o abandonou ao léu. O mesmo cenário negro que envolvia aquela sexta-feira santa envolve a humanidade; e o mesmo grito daquele justo que rompeu os céus continua a ser o grito dos excluídos de hoje que rompem os céus da existência e da angústia humana para clamar: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”?[1] Essa experiência põe abaixo o discurso da teodicéia que pretendia defender a Deus através de raciocínios filosóficos. E põe por terra o discurso tradicional segundo o qual Deus não abandona o justo e provê todas as necessidades do mundo com a sua divina providência[2]. Mas, agora, se constata historicamente que o ser humano vive abandonado ao seu duro destino: nascer, crescer e morrer. Sua existência é como a flor que de manhã é bonita e vigorosa, mas à tarde murcha e morre.

Mas onde está Deus? Não é ele quem defende o pobre, o órfão e a viúva? Porque não veio quando se acendiam fogueiras para queimar aqueles que buscavam a verdade? Porque não veio quando uma parte da população mundial foi banida com as duas grandes guerras? Enfim, porque não vem hoje que milhões de pessoas passam fome, estão desempregadas, sem teto e sem terra para plantar, excluídas pelo próprio sistema religioso vigente? Como disse alguém: Se Deus não veio em Alchwits, não virá jamais! Então Deus não existe?

Tanto a negativa como a positiva seriam respostas muito simples para a questão. Por isso, penso que a reflexão deva ser conduzida por outro caminho. Esse fenômeno nos remonta a uma categoria bíblica muito profunda: o deserto. A humanidade passa por um período de abandono, de solidão, de esterilidade profundas que se parece mais com aqueles quarenta anos simbólicos do deserto de Israel.

O deserto é um fenômeno antropológico, antes de ser um local. E seu significado mais profundo é a realidade do encontro e do confronto com a própria natureza humana que leva a um conhecimento profundo de si mesmo e da realidade histórica. É um momento único que leva quem o atravessa a fazer a experiência da sua mais profunda identidade e dele depende a realização ou a frustração eterna de quem o atravessa.

Acredito que Deus esteja “afastado” da humanidade para que ela possa se encontrar. Esse deserto, sim, pode ser chamado de providência de Deus, pois se Deus faz tudo, o ser humano perde a sua identidade e autonomia. E de fato, a humanidade estava perdendo a sua identidade, pois responsabilizava a Deus pelas suas conquistas e pelas suas derrotas. Percorrendo esse caminho, ela jamais poderia chegar à maturidade a qual é chamada. Então Deus se esvazia, se esconde para que a humanidade se perceba como existência, como ser no mundo e responsável por ele. Agora ela precisa ter a coragem de olhar os seus erros e assumi-los sem culpar a ninguém, nem a si mesma nem a Deus. Agora ela precisa se assumir e assumir a responsabilidade pelo mundo e protegê-lo, não como algo à parte, mas como parte de seu próprio ser. Isso me faz pensar na reflexão do iluminismo que renovou o pensamento ocidental, convocando o ser humano a sair do seu estado de infantilidade, atingindo a maturidade, o uso pleno da razão. Ela não pode mais pensar com a cabeça dos outros, apenas obedecendo a sistemas prontos, mas deve ousar pensar, ser, amadurecer. Ainda é justo lembrar Nietzche quando anuncia a morte de Deus e o nascimento de um super-homem que pudesse ser o responsável pelo seu próprio caminho. É preciso concordar com ele quando diz que Deus morreu. De fato esse Deus, que é a justificação de sistemas injustos que colonizam, que excluem e que marginalizam deve morrer. Ele deve dar lugar àquele Deus desconhecido que é a fonte íntima e motivante do ser humano, a sua mais profunda razão de ser e de amar.

Essa kénosis divina reveste o ser humano de uma dignidade inigualável, pois o homem só pode encontrar Deus quando se encontra a si mesmo. De outra forma não poderia encontrá-lo, pois a sua morada é o coração humano. É no mais profundo segredo do coração, na última morada, que Deus se encontra, é lá que ele marcou um encontro profundo com a pessoa humana e, deste encontro depende a sua felicidade.

A oração de Jesus nos mostra essa realidade: “Pai nosso que estás no céu”[3]. Não naquele céu que a tradição sempre pregou como recompensa pela prática do bem. Mas aquele céu da existência humana, da realização da pessoa e das suas aspirações mais profundas. O céu que está dentro do coração de cada pessoa e de todas as pessoas.

A humanidade está vivendo o seu deserto em busca de uma terra prometida. Essa terra prometida é aquela categoria bíblica que revela a mais profunda aspiração de transcendência do ser humano, criado para o infinito. Essa categoria da terra prometida era a mais profunda inspiração para viver que impulsionava Abraão na sua caminhada. A humanidade, hoje, mais do que nunca, precisa de uma motivação profunda para viver. Mas, essa motivação não pode vir dos antigos esquemas religiosos que são excludentes ainda hoje. Ela só virá quando o ser humano se voltar para aquela experiência originária que faz de sua existência a sua razão maior de viver e de morrer.

É dentro desse quadro que se pode entender a atitude desse Deus que se esconde, se esvazia de si mesmo até doar-se a si mesmo à humanidade inteira como fonte de vida e de amor. É no deserto que ele falará ao mais íntimo do coração humano: Atrairei você ao deserto e lá te falarei ao coração[4]. Lá no deserto-céu do coração a sede do ser humano será preenchida por completo. E aí, a ressurreição acontecerá, não como categoria que nos tomará no fim da existência, mas como presença total da vida aqui e agora. Não um paraíso para após a morte num céu distante, alheio à nossa realidade, mas um paraíso aqui e agora, fonte e motivação maior para a vida que se completa na vida do outro. Um paraíso terrestre onde a justiça e a paz reinarão para sempre no coração e nos relacionamentos do ser humano.

Queremos concluir essa reflexão com o pensamento muito significativo de Angelus Silésius, ex-protestante do século XVII: Se o Paraíso não estiver em ti desde o início, acredita-me: nele jamais entrarás. Ò nobre espírito, rompe as tuas amarras, não te deixes aprisionar dessa maneira. Podes encontrar a Deus de modo mais magnífico que todos os santos. Morrerás para a eternidade se não floresceres aqui e agora[5].

[1] Mateus 27, 46
[2] Aqui é preciso fazer uma observação: A religião desde os primórdios tem consolado o ser humano com a esperança de bens futuros, caracterizado por uma promessa de consolação após a morte para os sofredores, excluídos e marginalizados. Essa mentalidade causou um enorme descompromisso com as exigências sociais, tais como a promoção dos menos favorecidos da sociedade. Essa mentalidade causou uma alienação tão acentuada que se chegou a dizer que o pobre era necessário para o mundo e que o próprio Deus defendia essa acentuada divisão de classes.
[3] Mateus 6, 9.
[4] Oséias 2, 16.
[5] Angelus Silésius, Pèlerin cherubinique, trad. Henri Plard, Aubier, in Jean Comby, Para ler a história da igreja II, Do século XV ao século XX. Ed. Loyola, São Paulo, 1994.

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